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    Marcelo Coelho

    Glória em pedaços

    03/06/2015 02h00

    Os empreendimentos de Eike Batista nunca foram dos mais simpáticos –mas é claro que, a esta altura, não faz sentido insistir nas críticas a sua temeridade empresarial.

    Um de seus projetos, lembro bem, pareceu-me especialmente ameaçador. Agora já não sei se teria sido melhor vê-lo concluído, em vez de saber sobre seu abandono.

    Tratava-se da reforma do histórico Hotel Glória –que, hoje, quando passo em frente, não passa de um espectro branco escondido entre tabiques.

    Vejo num site de leilões da internet que, na sexta-feira passada, começaram a ser vendidos os objetos de decoração do velho hotel. Isoladas em seus lotes, algumas peças podiam ser facilmente reconhecidas por quem quer que tenha passado por aquelas portas de cristal.

    Quase ao lado do aeroporto Santos Dumont, o Hotel Glória se impunha como um destino de luxo para os recém-chegados ao Rio.

    Hasteava um semicírculo de bandeiras à frente das balaustradas brancas que fechavam a sua sacada principal. Seu nome, em letras maiúsculas e regulares, duplicava o azul profundo da palavra "Varig" na ponta do Santos Dumont.

    Nesse sentido, era menos discreto que o Copacabana Palace. Quem vê o grande edifício baixo da avenida Atlântica sabe do que se trata; mas seu nome não se apresenta com orgulho ou evidência.

    O Glória, ainda mais porque se assentava numa pequena colina, como uma rainha em seu trono, envolta em tafetás e rendas, era mais imediato e ao mesmo tempo mais complexo. Desconhecia o sistema pedestre da fachada única, das laterais, dos quarteirões.

    A sua frente, se podemos dizer assim, era em curva–e os fundos se embrenhavam pelos flancos de algum morro, abrindo espaço para dois conjuntos de piscinas, em planos diferentes.

    Gosto dos grandes prédios que se espalham por terrenos desiguais —de modo que nem mesmo seja possível saber em que andar nos situamos. O térreo de repente se revela o segundo subterrâneo, conforme a rua se inclina –e, ao sair do edifício, eis que tudo está mais alto, mais inatingível, do que quando tínhamos entrado.

    É também assim que o tempo escava seus túneis na alvenaria branca de nossa consciência.

    Entro no Hotel Glória em 1981, espantado com o alto porteiro vestido de libré, quase um sósia do príncipe Charles. Saio de lá às pressas, para uma van que me levava a um centro de conferências, por volta de 2002, lembrando-me da noite da véspera, em 1994, quando o teatro do hotel (não sei se no térreo ou mais embaixo) apresentava uma peça de Ibsen.

    Desse labirinto emerge agora muita coisa. Por exemplo, um tocheiro de estilo colonial (lance mínimo: R$ 350), assim descrito no site de leilões de Andréa Diniz: "lanterna de parede em bronze remanescente do extinto Hotel Glória. Faltando os vidros e faltando o acabamento da parte inferior. Altura: 1,80 m",

    Ou um conjunto daquelas arandelas de parede, com as lâmpadas imitando a chama de uma vela, cujo destino parece ter sido sempre o de parecer um candelabro bêbado, à beira do desmaio ou do colapso.

    Mais sólidas, as luminárias de teto, compactas como um broche emprenhado de bagas de cristal, lembram vagamente os botões de parede com que se acionam as válvulas de descarga: várias dessas estruturas de metal dourado se repetiam pelos corredores do Hotel Glória.

    Corredores ao longo dos quais, de quando em quando, postavam-se estreitos sofás com assento de palhinha, onde ninguém sentava, exceto os fantasmas que, a partir de agora, tomam posse definitiva, hóspedes sem bagagem nem pedidos, do palácio inteiro que não existe mais.

    Todos esses enfeites, os papéis de parede carmesim, os bancos de saiote no desbotamento de seu veludo verde, os torneados manuelinos, os ouropéis coloniais, sempre entoavam uma nota falsa, um luxo inautêntico de teatro velho.

    Mas é precisamente nessa falsidade que estava a vida de um hotel como esse. Mero hóspede a serviço de uma palestra eventual, de uma convenção sem importância, eu estava ali, como todos os outros, numa espécie de filme que me levava ao convívio de Getúlio Vargas, de Ava Gardner, de não sei que milionário marroquino.

    Eram sonhos, claro. Mais sólidos, talvez, do que os de Eike Batista, desfizeram-se de todo modo, aos pedaços, em cacos de vidro, metros de tapete, lençóis amarelados, lotes de leilão.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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