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    Marcelo Coelho

    Solta esse cabelo

    01/07/2015 02h00

    A economia vai mal, a política pior ainda, o salário diminui, o desemprego aumenta. Mas o desânimo não parece ter atingido de modo idêntico todos os aspectos da vida nacional.

    O mundo da publicidade, ao que tudo indica, mantém confiança no consumo popular. É o que vejo, com alegria, na nova campanha do xampu Palmolive.

    Palmolive! Minha memória dessa marca remonta a alguns anúncios filmados em preto e branco, bem piores do que os do sabonete Lux.

    Neste caso, atestava-se que "nove entre dez estrelas de cinema" recorriam ao produto. Havia modéstia na inverdade, mas sempre alguma atriz de Hollywood aparecia para garantir a afirmação.

    No caso do Palmolive, tudo era mais estranho. Derramava-se um fio de azeite, não em cima de uma salada ou, vá lá, de uma pizza, mas sim sobre a mão de uma mulher. Num truque cinematográfico, aquilo se solidificava num sabonete.

    Era o que tínhamos em casa. Embora a "suavidade do azeite de oliva" fosse apregoada pelo anúncio, o fato é que aquele sabonetão verde em pouco tempo ganhava rachaduras dignas do chão da caatinga.

    Para piorar, havia o hábito de embutir o resto do sabonete velho no sabonete novo, criando hibridismos de verde, azul e rosa, sem dúvida capazes de prejudicar a exclusividade de qualquer "fragrância" e de alterar o "equilíbrio" de toda fórmula.

    Mas também, que ideia essa de usar azeite de oliva num sabonete! Talvez, naquela época, fosse ainda uma coisa cara, difícil de encontrar. Os óleos de salada ou de pizza eram mistos, à base de algodão ou de amendoim. Sou, confesso, anterior ao óleo de soja.

    Um azeite legítimo, que praticamente só havia da marca Carbonell (cuidado, o de lata amarela era argentino, o da vermelha é que era espanhol), consistia quase em artigo para se dar de presente num aniversário.

    As coisas eram tão "austeras", e a importação de produtos tão precária no Brasil do milagre econômico, que me lembro perfeitamente de um jantar em casa em que o casal convidado trouxe de presente, não flores ou bombons, mas um melão. Espanhol, no duro.

    Vê-se, portanto, como a concentração de renda é uma coisa complicada. Sabemos das enormes desigualdades sociais do Brasil em 1970. Mas o fechamento da economia, as fortes restrições para levar dólares em viagens ao exterior, o preço das passagens aéreas, a própria cotação oficial da moeda –tudo isso terminava refreando muito o consumo de luxo.

    Deve haver, imagino, uma relação estreita entre globalização e desigualdade de renda. Não sei. Mas com certeza aumentaram imensamente, no mundo inteiro, as aparências do desperdício, do luxo, do consumo acintoso de inutilidades coruscantes.

    Mesmo que, na prática, a miséria possa ter diminuído, a vida dos super-ricos nunca brilhou tanto.

    Seja como for, é ótima notícia ver que a vida dos bem pobres, dos mais ou menos pobres, e dos não tão pobres assim, ainda vai se sustentando um pouco no Brasil. Custo a crer que o avanço social da última década se reverta inteiramente.

    Talvez seja delírio da publicidade, mas eis aí o novo comercial da Palmolive. É de uma euforia popular contagiante. A ideia é dizer que o xampu alisa seu cabelo "quatro vezes mais". Mulheres lindas, de todas as raças, dançam então, em todos os ritmos, tendo paisagens típicas do Rio de Janeiro ao fundo.

    "Solta o cabelo!", diz a propaganda. Homenzinhos com cara de malandro, chapéu em riba, barba rala no rosto esquálido, tentam se aproximar das morenas poderosas. Levam invejáveis trancos das bailarinas Palmolive.

    Loiras de cabelos cacheados, com minivestidos de renda branca, saracoteiam sob as vistas do Cristo Redentor. Não têm por que despertar inveja nas beldades de pele mais escura, capazes de girar o pescoço –e os cabelos– como pás de ventilador.

    "Quer ver ele caindo de joelho?", pergunta o anúncio. "Solta esse cabelo." Com Palmolive, você vai deixar as outras "na lama, com dor de cotovelo". Há versões pop, sertanejo, forró e não sei mais qual.

    Celebra-se, ainda agora, a ascensão da classe C. A não ser que, como sugerem os mais pessimistas, todo o processo econômico recente se tenha resumido ao esforço, obviamente inútil, de sair da lama puxando para cima os próprios cabelos. Soltá-los, agora, vai ser difícil.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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