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    Marcelo Coelho

    Primitivos ao norte

    15/07/2015 02h00

    Angustiado com o subdesenvolvimento de seu país, um economista de vinte e poucos anos aventurou-se pelas terras inóspitas do norte. Deparou-se com uma população paupérrima, primitiva, quase pré-histórica, entregue a rituais de xamanismo.

    Máscaras, tambores, mantos misteriosos cobertos de amuletos: uma longa noite tribal se estendia ante os olhos daquele rapaz. Ele não estava na Amazônia nem na Polinésia, mas sim entre os Komi, povo que habitava os confins setentrionais da Rússia e da Finlândia.

    O ano era 1889, e o economista logo iria desistir de sua profissão para se tornar pintor. Tratava-se de Wassily Kandinsky (1866-1944), pioneiro e teórico da arte abstrata. Parte importante de sua obra fica em exposição em São Paulo, até 28 de setembro, no Centro Cultural Banco do Brasil.

    Nessa mostra, não se destacou apenas a pintura mais avançada e vanguardista de Kandinsky. O espectador encontra muita coisa relacionada ao cotidiano popular –imagens rústicas de santos, gravurinhas coloridas, trenós pintados de vermelho, rocas, batentes e baús.

    Sem dúvida, os organizadores da exposição procuraram mostrar que a arte de Kandinsky não é resultado apenas de uma busca desabalada pela pura modernidade das formas.

    Um dos artistas mais "avançados" de seu tempo, ele não deixava de estar com os olhos voltados também para o passado.

    Foi comum dizer, por influência do crítico americano Clement Greenberg, que a arte abstrata seria como que a culminação de tudo o que a pintura sempre quis ser.

    O "motivo" do quadro deixa de ter importância. Não se tratava mais de retratar vasos de flores, batalhas, santos ou florestas, mas de fazer a pintura valer pelo que de fato é: organização de formas e cores sobre uma tela plana.

    Caberia, então, ir "depurando" cada vez mais a pintura de seus assuntos. Alguns quadros marcantes de Kandinsky se tornam quase que um quebra-cabeças.

    Tome-se, por exemplo, o seu "São Jorge (1)", presente no CCBB.

    Cadê o santo? Cadê o dragão? Na festa dos triângulos e trapézios vermelhos, aos poucos identificamos um rosto (mas quanto pavor nesses traços simiescos!), uma lança (mas por que esse verde pardacento?), e as asas (esse leve ziguezague?) do dragão.

    Por mais intensa e dramática que seja essa pintura, por certo o seu "assunto" se esvai no que é exercício de vibração e cor. Estaríamos, assim, cada vez mais longe da "realidade" e daquilo que, popularmente, se espera de um quadro de São Jorge.

    Ocorre que a interpretação "formalista", no estilo de Greenberg, é apenas metade da história. A exposição Kandinsky conta a outra metade.

    Nada mais "popular" (menos "intelectualizado", se quisermos) do que os motivos geométricos, as espirais abstratas que ornamentam uma velha arca, o espaldar de uma cadeira, um vaso de cerâmica numa casa camponesa.

    Também ali o vermelho, o amarelo, o verde aparecem com sua força visual própria.

    Com seu poder mágico, quem sabe... Se um quadro de Kandinsky pode ser analisado como uma estrutura racional de ritmos e padrões em movimento, nada impede que possa também parecer um objeto mágico, tão cheio de enigmas quanto os fetiches e balangandãs de ferro que, vindos não se sabe de que terra glacial do norte, foram recolhidos para essa exposição.

    Não apenas o mundo primitivo russo –aquele da "Sagração da Primavera" de Stravinsky– está presente no CCBB. A arte popular alemã, com suas pinturinhas de santos sobre vidro, suas cores simples e sua realização imperfeita, foi importante na fase expressionista de Kandinsky e na obra de sua amante, a pintora Gabriele Münter (1877-1962).

    O insuficiente, o tosco, o ingênuo, o pouco sofisticado funcionariam assim como uma espécie de fonte de energia para esses artistas eruditos.

    O mundo capitalista, dizia o filósofo Ernst Bloch na década de 1930, está em desagregação; não há como consertá-lo, como juntar novamente seus pedaços. De suas brechas e ruínas, das frestas de tudo o que não se encaixa, pode-se entrever, mal e mal, a luminosidade do novo. Seria esta a origem, dizia ele, do gosto modernista pelo primitivo, pelo irracional e pelo imperfeito.

    Bloch era otimista em demasia; mas, se a esperança é a última que morre, todas as cores de Kandinsky parecem alimentá-la e aquecê-la, nessa exposição.

    P. S. Férias; volto em meados de agosto. Até lá.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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