• Colunistas

    Tuesday, 07-May-2024 20:24:08 -03
    Marcelo Coelho

    Despenalizar, descriminalizar

    21/08/2015 02h00

    Num voto de mais de duas horas, que mencionou até a constitucionalidade de uma lei sobre abertura de farmácias na Baviera em 1958, o ministro Gilmar Mendes defendeu ontem, no STF, teses liberais no "tormentoso debate" sobre a posse de drogas para uso pessoal.

    Começou refutando uma argumentação levantada na véspera pelo advogado David Azevedo. Para aquele representante da Associação Paulista pelo Desenvolvimento da Medicina, a lei atual já não trata o portador de drogas como criminoso, não havendo por que contestá-la.

    Nada disso, afirmou Gilmar Mendes. De fato, a legislação não quer que o usuário seja preso –"despenaliza" a conduta, esse o termo técnico. Só que continua criminalizando.

    As medidas educativas e preventivas que constam da lei 11.343 estão incluídas numa seção intitulada "dos crimes e das penas". Não se pode pressupor, continuou Gilmar Mendes, que os legisladores tenham simplesmente se equivocado quando optaram por essa rotulação. O próprio STF, em julgamento de 2007, já tinha decidido sobre esse ponto.

    Mas a questão agora é saber se, pela Constituição, a posse de drogas para uso pessoal pode ser tratada como crime. Se o uso é pessoal, o Estado tem direito de interferir sobre a liberdade de escolha do indivíduo?

    Às vezes, admitiu o ministro, a lei pode punir condutas que não têm efeito concreto, imediato, sobre a comunidade. É quando se fala em "perigo abstrato". Em tese (o exemplo é meu), poderia incluir-se nessa categoria o ato de guardar uma arma de fogo dentro de casa –ainda que apenas para "uso pessoal" de um aspirante a suicida.

    O problema é que criminalizar a posse de drogas termina sendo incoerente, disse Gilmar, com os próprios fins da legislação. Quer-se ajudar o usuário, promover sua reinserção social.

    Na prática, ocorre o contrário. O portador de drogas é estigmatizado. Na grande maioria dos casos –o ministro citou estatísticas do Rio e de São Paulo–, quem é flagrado com pequena quantidade de drogas pela polícia é condenado como traficante. Ao contrário de outros países, o Brasil não estabelece em lei a quantidade exata de substância que pode ser considerada como sendo para uso pessoal.

    Jovens negros e pardos, sem antecedentes criminais e na maioria com trabalho, terminam sendo apanhados. Em geral, a polícia os surpreende andando sozinhos, ou seja, sem testemunha.

    A palavra do policial –"longe de mim duvidar dela", ressalvou Gilmar– termina sendo decisiva para as condenações, que ocorrem na vasta maioria dos casos.

    Não se trata de legalizar. Mas o combate às drogas pode ser muito mais efetivo sem que passe pelo caminho da polícia e da legislação penal. Não foi preciso, lembrou Mendes, criminalizar o cigarro para diminuir o tabagismo.

    Na experiência de cerca de 20 países, ademais, o consumo de drogas não aumentou quando a lei foi abrandada.

    O que diminuiu (Mendes enfatizou o caso português) foi a vergonha de procurar tratamento.

    As medidas contra a posse de drogas são inconstitucionais, concluiu o relator do caso, porque atingem "em grau máximo, e sem necessidade", o direito dos indivíduos à intimidade, à honra e à liberdade pessoal.

    Com os elogios de praxe, Luiz Facchin, o ministro a votar em seguida, pediu vistas do processo. Tudo fica suspenso até segunda ordem.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024