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    Marcelo Coelho

    Dentes em pandarecos

    26/08/2015 02h00

    Perto dos 60 anos, já aposentado, o professor universitário sente que caiu a ficha, depois de tomar alguns copinhos de vodca. Ele mal estava se acostumando com a vida adulta –e se vê, de repente, como um ancião.

    Se o dentista não recuperar direito aquele dente do fundo, que balançava, logo chegaria a hora drummondiana das "dentaduras duplas". Nosso personagem não conhecia, por certo, os versos do poeta mineiro: "Dentaduras duplas!/... / Serei casto, sóbrio,/ Não vos aplicando/ Na deleitação convulsa/ De uma carne triste/ Em que tantas vezes me perdi".

    Sóbrio, o professor universitário André está longe de ser. É um dos protagonistas do curto romance "Mal-Entendido em Moscou", de Simone de Beauvoir. O livro, escrito em 1966/67, permaneceu muito tempo inédito na França e sai agora no Brasil pela editora Record.

    O professor que se descobre repentinamente velho, e exagera no álcool e no cigarro, foi claramente inspirado em Jean-Paul Sartre (1905-1980). Uma rotina de reuniões políticas, de atos em favor das mais diversas causas de esquerda, ocupa o tempo que ele ainda tem para viver.

    As reflexões entristecidas de Simone de Beauvoir não chegam ao ponto, claro, de destruir a imagem de Sartre. Mas saiu também agora no Brasil uma caixa com dois DVDs, intitulada "Sartre no Cinema" (selo Versátil), que talvez contribua para questionar ainda mais o alegre radicalismo do filósofo.

    O primeiro DVD traz um longo depoimento de Sartre a um grupo de amigos seus, realizado no começo da década de 1970.

    Apesar dos dentes em pandarecos, Sartre está em ótima forma: consegue ser implacável consigo mesmo, sem cair na autoflagelação. Quase sempre, ele parece estar acima da modéstia, da imodéstia ou da falsa modéstia. Não de todo: em determinado momento, diz que "não é inteligente".

    A entrevista foi concedida na sua fase maoísta. Sartre enfatiza o modo como viveu e aprendeu a "violência". Conta episódios do que hoje chamaríamos de bullying escolar.

    Sem muita mediação, o recurso à "violência revolucionária" entra na conversa. André Gorz pergunta a Sartre se não era complicada uma revolução como a de Cuba, feita a partir "do alto" por um grupo armado.

    Sartre mais ou menos dá de ombros. Que se apoie a revolução, sugere, até a hora em que começar a não dar certo. Elogia em seguida o projeto chinês (a França de 1970 lhe parece uma sociedade "abominável"), segundo o qual o intelectual deve imergir "nas massas".

    Estava velho demais para ir trabalhar numa fábrica, reconhece; dedica-se à sua imensa obra sobre Flaubert. Quem sabe, no futuro, o livro servirá ao proletariado.

    A sensação que se tem, vendo o filme agora, é que nada daquelas opiniões radicais era mesmo para valer. "C'est pas sérieux", esse elogio da violência; como apoiar "libertações" estando consciente de que logo se transformarão em ditaduras?

    Persistem, apesar de tudo, o carisma e a rapidez de Sartre, seu brilho na formulação de paradoxos aparentemente honestos e lúcidos, mas no fundo irresponsáveis.

    "A violência é inadmissível, mas ao mesmo tempo inevitável, eis o nosso drama", dispara o duríssimo Sartre vivido à perfeição por Denis Podalydès em "Sartre: A Era das Paixões", filme de Claude Goretta incluído na caixa da Versátil.

    Ele está discutindo com um jovem aluno de ciência política, durante os últimos anos guerra de libertação da Argélia (1954-1962). O rapaz escondera em sua casa um militante argelino, e leva um susto ao vê-lo assassinar um inimigo a sangue-frio. Intelectuais franceses se jogaram na clandestinidade para apoiar o movimento da Argélia, que incluía atentados terroristas.

    Sartre é maravilhoso ao condenar a tortura cometida pelos franceses contra os guerrilheiros. Não se importa com a violência revolucionária, e entre uma coisa e outra se entrega a diversos casos de amor simultâneos –até mesmo com a namorada do jovem estudante.

    O rapaz, concluo pelo filme, vai entrando na vida adulta. Sartre, no embaraço de cuidar de tantas namoradas, age como um garoto desastrado... e irresistível. Qualquer que tenha sido a intenção de Claude Goretta, o filósofo não se sai bem da comparação.

    Mal se via como adulto, e já era um velho: na frase de Simone de Beauvoir, intui-se o segredo da eterna juventude de Sartre. Preferível (penso em seu rival Raymond Aron) ser velho desde sempre.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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