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    Marcelo Coelho

    O sono das coisas

    16/09/2015 02h00

    Toda segunda-feira, ao longo de mais de dez anos, um grupo de amigos recebe por e-mail uma foto, ou melhor, uma "fotopoesia" feita pelo paulistano Tadeu Jungle, que é cineasta, performer, artista multimídia e não sei mais o quê.

    Algumas dessas fotos, junto com uma retrospectiva de muitas outras criações de Jungle, podem ser encontradas agora no livro "Videofotopoesia", sólido volume em capa dura, com quase 400 páginas, lançado pela F10 editora, em parceira com a Oi Futuro.

    Frequentemente, Jungle retrata objetos banais, chegando ao limite do pobre, do feio, do que não tem nenhuma esperança de ser visto.

    Duas cadeiras de plástico branco, frente a frente, separadas por uma mesa também de plástico, com um furo no meio de onde sai a haste de um guarda-sol. Nada mais do que isso. Só que a foto faz parte de uma série intitulada "Diálogo", e no livro está ao lado de outra, igualmente desolada, de duas chaleiras em cima de um fogão.

    Os títulos inventados por Tadeu Jungle produzem uma espécie de tremor humano no que parecia ser apenas o registro fotográfico de objetos sem interesse. É como se cada coisa inanimada estivesse esperando pelo sopro que lhe trouxesse à vida.

    A tinta branca da parede, por causa de alguma infiltração de umidade, descascou ou parece a ponto de romper-se; "a natureza vai entrar na sala", comenta o fotógrafo. Um colchão revestido de curvim, encostado num canto, mostra através de um rasgo seu interior de espuma amarela e suja. "Ainda Sinto Você em Mim" é o título da foto.

    Sentimentos como dor e solidão parecem combinar pouco com uma carreira que, como se pode ver pelo livro de Tadeu Jungle, tem sido das mais frenéticas, recorrendo muitas vezes ao jogo de palavras, à ironia e à travessura.

    Em "Autorretrato Publicitário Cara de Cu", de 2004, o artista se apresenta com um idêntico rosto sorridente em diversas fotos, nas quais põe em destaque produtos de comercialização corriqueira, como os Sucrilhos Kellogg's, e outros de menor apelo publicitário, como um enorme osso de boi.

    Há intervenções bem mais delicadas, como um projeto de arte postal em que Tadeu Jungle manda uma carta para um endereço que não existe. Naturalmente, a carta vai ser devolvida pelo correio a quem a remeteu.

    Aí vem a graça da coisa: em vez de escrever o próprio nome como remetente, Jungle preenche o espaço com o nome e o endereço da pessoa a quem de fato queria mandar a carta. Desse modo, a pessoa acaba tendo devolvida, para si mesma, uma carta que nunca tinha mandado... com notícias e cumprimentos de Tadeu Jungle.

    O que dizer de iniciativa tão doce e gratuita? Assim como as "fotos de segunda-feira", o artista parece resignar-se a um círculo limitado de intervenção. Ao mesmo tempo, Tadeu Jungle tem apostado em performances e outros tipos de arte pública –como o grafite, de que é pioneiro em São Paulo. Foi ele quem, no começo da década de 1980, escrevia a frase "édifícil", assim mesmo, tudo junto, numa cursiva de spray pelos muros da cidade.

    Em outra performance, no Rio de Janeiro, Jungle oferecia balões de gás hélio biodegradáveis aos passantes; em cada balão, estava pintada uma flecha apontando para o alto. A ideia era que, ao soltar o balão, cada participante formulasse um desejo.

    A suavidade dessas ideias não se dissocia, é claro, da expectativa de toda vanguarda: a saber, a de uma arte que possa mudar o mundo. Ao mesmo tempo, não parece haver nada de messiânico no que faz Tadeu Jungle.

    Não é à toa que, na maioria de suas obras, o sentimento predominante parece ser o da melancolia. Por certo, na sua produção propriamente plástica –caligrafias, principalmente– tudo parece tomado de vitalidade extrema.

    Mas deixem o artista sozinho diante do mundo, com uma câmera na mão. Tirou fotos e mais fotos de São Paulo à noite, com chuva, de dentro do carro parado no congestionamento. Vai à praia: o mar cinza, perfurado de pingos de mais chuva, parece uma extensão de asfalto que se espreguiça sob um cobertor de nuvens.

    Um cacho de bananas no escuro, fotos de modelos publicitárias meio encobertas de areia, o desenho de uma mangueira amarela no gramado: Tadeu Jungle parece estar sempre esperando que as coisas despertem de seu sono. E que as pessoas façam o mesmo, por meio de uma arte sem alarido, meio triste nas esperanças que tem.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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