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    Marcelo Coelho

    Jeitinho israelense

    30/09/2015 02h00

    Numa fração de segundo, conta o escritor israelense Etgar Keret, um amigo da família acidentou-se seriamente. Seu relógio de pulso tinha escapado e caiu dentro de uma máquina, na fábrica em que ele trabalhava.

    Sem pensar, o homem enfiou a mão para recuperar o relógio, e as lâminas do equipamento deceparam seu dedo.

    A reação de Keret, que era pequeno quando ouviu a história, não diferiu da que qualquer um de nós teria: "Se um dia eu deixar cair o relógio em uma máquina cheia de lâminas, de jeito nenhum vou fazer a idiotice de tentar pegá-lo".

    Muitos anos depois, já casado e com um filho de seis anos, o autor percebe que não deveria ter tantas certezas assim.

    Numa fração de segundo, sem pensar, Keret comete um erro diverso, mas também irreversível e sem justificativa: promete levar o filho à Eurodisney.

    Em pouco mais de uma página, está assim montado o mecanismo de "Parque de Diversões", crônica que faz parte do livro "Sete Anos Bons" (ed. Rocco).

    O tom humaníssimo e casual desses textos, que narram o cotidiano de Keret como jovem pai num país atravessado pelas hostilidades entre árabes e israelenses, disfarça com habilidade o que há de construído, de arquitetado, de planejado em cada história.

    Keret é um escritor gracioso e secreto como um felino –e deixa para o final de cada crônica um arremate que, por vezes, esclarece tudo, e, outras vezes, abre-a para um novo e maior mistério.

    Não que ele seja, como diz um crítico da BBC em frase reproduzida na capa, uma mistura de Kafka com um comediante. Kafka tem seu próprio senso de comédia, que transcorre como se no teatro tivesse faltado a luz.

    Há muito sol no cenário de Keret, embora seu brilho rivalize, frequentemente, com o dos mísseis que cruzam o céu de seu país.

    Numa fração de segundo, casas e prédios podem ser destruídos em Israel. A essa sensação de perigo, que se traduz muitas vezes em agressividade e culpa entre seus habitantes mais liberais, Keret parece responder com uma ou duas interessantes estratégias literárias.

    A primeira seria, acho, a da metáfora diferida –como uma bomba de efeito retardado. Na história sobre a Eurodisney, só nas últimas linhas percebemos uma nova e surpreendente semelhança entre o caso do trabalhador que amputou o dedo e a viagem forçada do pai ao parque de diversões em Paris.

    Outra crônica explora as semelhanças entre o lagarto encontrado num quarto de hotel e a situação de um escritor que, vindo de um país objeto de tantas críticas internacionais, deve enfrentar plateias desconfiadas num festival literário em país de maioria muçulmana.

    Mais uma crônica, e vemos que a corrupção em Israel não é das menores. Um parágrafo dá conta de escândalos no Parlamento, na seleção de futebol, num time de basquete e no Ministério da Fazenda –nesse caso, um ex-ministro terminou atrás das grades.

    Eis que Etgar Keret é chamado na escola: seu filho pequeno consome chocolates, alimento banido na instituição. Keret se senta para conversar com o menino. Repreende-o: "Você come todo o chocolate sozinho e não divide com as outras crianças".

    Claro, responde o pequeno Lev. "Não posso dar nada porque as crianças não podem comer doces na escola." O pai se segura. "Se as crianças não podem comer doces na escola, por que você acha que pode?"

    Não conto de que modo o menino se sai dessa, mas certamente ele não renega a esperteza do avô, capaz de negociar com a máfia italiana nos anos do pós-guerra, e idealizador de uma solução genial para conseguir, sem dinheiro nenhum, lindos pisos de cerâmica para seu apartamento novo. Isso é narrado no meio de um relato sobre operação de câncer.

    Particularidades da vida israelense –como a truculência dos taxistas, a necessidade de ilustrações especiais para versões ortodoxas de livros infantis, ou a questão do serviço militar– são tratadas com um humor especialmente retorcido, como se o nosso "jeitinho brasileiro" fosse refinado por milênios de discussão talmúdica.

    Como o Brasil, Israel parece ser fonte de infindável mal-estar ético, ao menos para os que não se refugiaram no belicismo total e na autojustificação fundamentalista. Com suas metáforas improváveis e semelhanças bizarras, Etgar Keret faz de cada crônica um exercício de aproximação entre opostos, de contato entre realidades incompatíveis –algo que, também por aqui, merece ser tentado.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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