Sim. Eles já chegaram, os panetones, às prateleiras do supermercado perto de casa. Pensando bem, não há nada de tão estranho nisso.
Já estamos quase na metade de outubro –mas custo a acreditar. Repito a impressão que me assalta a cada ano: a de que o Natal começa cada vez mais cedo. Um belo dia emenda na Páscoa, fazendo desaparecer qualquer intervalo que eu possa ter para dietas e exercícios entre o ovo e o peru.
Deixando de lado esse sentimento pessoal, ligado à passagem do tempo, imagino que possam existir outros fatores na irrupção de tanto marketing natalino a partir de agora.
Espera-se, por certo, ampliar o consumo. O freguês que abre esta semana sua primeira caixa de panetone continuará comprando outras; no mínimo, a que se impõe sobre a mesa do 24 de dezembro.
Mais importante do que isso, acho que a crise econômica estimula a tentativa de realizar o mais cedo possível as vendas programadas para depois.
Estamos diante de uma verdadeira pedalada gastronômica. O dinheiro que chegar agora adiantará, quem sabe, os gastos do ano que vem.
O freguês, por seu turno, sente-se algo inseguro nestes últimos tempos. Não que esteja contando com uma falência total, a ponto de ver ameaçado um mínimo de ceia até dezembro. Sabemos, entretanto, que diante de qualquer ameaça existe uma tendência generalizada para comer mais.
Mesmo imaginário, o medo do futuro leva a que se compre agora o que pode faltar depois. Ou será a expectativa inflacionária? Vejo o panetone; melhor comprar.
O mesmo vai ocorrendo, e não é de agora, com a programação das férias. Quanto mais se fala de crise econômica, e quanto mais as estatísticas confirmam o discurso, mais raros parecem ser os pacotes turísticos à disposição.
Será que as agências diminuíram a oferta? Se for isso, talvez tenham errado os cálculos. Procure você mesmo hotéis nas praias do Nordeste. As passagens aéreas estão caríssimas, as diárias não retrocedem, e não há vagas.
O pânico aquece a demanda? O medo do desemprego não sei se é geral, mas acho que é menor do que o medo de não conseguir viajar no fim do ano.
Escrevo, vale insistir, a partir de impressões pessoais. Talvez uma grande parcela de brasileiros viva, na prática de todos os dias, uma cultura das pedaladas. O crédito consignado, o empréstimo, o cheque especial –a convivência com dívidas, em suma– configuram uma situação de corrida eterna para a frente.
É como se muita gente estivesse construindo, dia a dia, a ponte sobre a qual, ao mesmo tempo, avança com seu carro, seus bens e sua casa, sem ver exatamente a distância que falta para alcançar a outra margem do rio.
Vem daí, quem sabe, uma espécie de "pressa parada" que sentimos com frequência na atual conjuntura. A crise caminha devagar demais, e não acompanha o ritmo cada vez mais rápido das informações.
Há meses se repete, sem descanso, a ideia de que o impeachment é fato consumado. Não se trata de prognóstico improvável, dada a quantidade de erros do governo e sua falta de sustentação política. Mas o andamento das coisas não coincide com o andamento das opiniões e dos desejos.
O mesmo se pode dizer da própria recessão. As linhas dos gráficos podem inclinar-se, sem dúvida, num ângulo pavoroso de queda livre; o comércio, seus fornecedores, ressentem-se de tudo, lojas fecham.
Mas a realidade procede em câmera lenta, pelo menos se compararmos com a fraseologia comum entre os analistas, feita de verbos como "despenca" e "dispara".
Não quero minimizar nada, nem defender o atual governo (embora não engrosse o coro pelo impeachment).
Observo, apenas, que muita coisa se empurra com a barriga, da política aos carrinhos de supermercado.
Queremos, de qualquer modo, que o futuro chegue logo. Que o Natal, o impeachment, o Carnaval, as novas eleições, o fim da recessão ou seu agravamento catastrófico se concentrem numa data única e derradeira.
"O tempo vai comendo a vida", dizia Baudelaire, "e o obscuro inimigo que nos rói o coração/ com o sangue que perdemos se alimenta e fortalece". Pode ser. O contrário também é verdade. Somos comedores de tempo, devoramos os dias futuros, numa antecipação insaciável que nos impede de viver. Aceita um panetone?
É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.