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    Marcelo Coelho

    Panetones?

    14/10/2015 02h00

    Sim. Eles já chegaram, os panetones, às prateleiras do supermercado perto de casa. Pensando bem, não há nada de tão estranho nisso.

    Já estamos quase na metade de outubro –mas custo a acreditar. Repito a impressão que me assalta a cada ano: a de que o Natal começa cada vez mais cedo. Um belo dia emenda na Páscoa, fazendo desaparecer qualquer intervalo que eu possa ter para dietas e exercícios entre o ovo e o peru.

    Deixando de lado esse sentimento pessoal, ligado à passagem do tempo, imagino que possam existir outros fatores na irrupção de tanto marketing natalino a partir de agora.

    Espera-se, por certo, ampliar o consumo. O freguês que abre esta semana sua primeira caixa de panetone continuará comprando outras; no mínimo, a que se impõe sobre a mesa do 24 de dezembro.

    Mais importante do que isso, acho que a crise econômica estimula a tentativa de realizar o mais cedo possível as vendas programadas para depois.

    Estamos diante de uma verdadeira pedalada gastronômica. O dinheiro que chegar agora adiantará, quem sabe, os gastos do ano que vem.

    O freguês, por seu turno, sente-se algo inseguro nestes últimos tempos. Não que esteja contando com uma falência total, a ponto de ver ameaçado um mínimo de ceia até dezembro. Sabemos, entretanto, que diante de qualquer ameaça existe uma tendência generalizada para comer mais.

    Mesmo imaginário, o medo do futuro leva a que se compre agora o que pode faltar depois. Ou será a expectativa inflacionária? Vejo o panetone; melhor comprar.

    O mesmo vai ocorrendo, e não é de agora, com a programação das férias. Quanto mais se fala de crise econômica, e quanto mais as estatísticas confirmam o discurso, mais raros parecem ser os pacotes turísticos à disposição.

    Será que as agências diminuíram a oferta? Se for isso, talvez tenham errado os cálculos. Procure você mesmo hotéis nas praias do Nordeste. As passagens aéreas estão caríssimas, as diárias não retrocedem, e não há vagas.

    O pânico aquece a demanda? O medo do desemprego não sei se é geral, mas acho que é menor do que o medo de não conseguir viajar no fim do ano.

    Escrevo, vale insistir, a partir de impressões pessoais. Talvez uma grande parcela de brasileiros viva, na prática de todos os dias, uma cultura das pedaladas. O crédito consignado, o empréstimo, o cheque especial –a convivência com dívidas, em suma– configuram uma situação de corrida eterna para a frente.

    É como se muita gente estivesse construindo, dia a dia, a ponte sobre a qual, ao mesmo tempo, avança com seu carro, seus bens e sua casa, sem ver exatamente a distância que falta para alcançar a outra margem do rio.

    Vem daí, quem sabe, uma espécie de "pressa parada" que sentimos com frequência na atual conjuntura. A crise caminha devagar demais, e não acompanha o ritmo cada vez mais rápido das informações.

    Há meses se repete, sem descanso, a ideia de que o impeachment é fato consumado. Não se trata de prognóstico improvável, dada a quantidade de erros do governo e sua falta de sustentação política. Mas o andamento das coisas não coincide com o andamento das opiniões e dos desejos.

    O mesmo se pode dizer da própria recessão. As linhas dos gráficos podem inclinar-se, sem dúvida, num ângulo pavoroso de queda livre; o comércio, seus fornecedores, ressentem-se de tudo, lojas fecham.

    Mas a realidade procede em câmera lenta, pelo menos se compararmos com a fraseologia comum entre os analistas, feita de verbos como "despenca" e "dispara".

    Não quero minimizar nada, nem defender o atual governo (embora não engrosse o coro pelo impeachment).

    Observo, apenas, que muita coisa se empurra com a barriga, da política aos carrinhos de supermercado.

    Queremos, de qualquer modo, que o futuro chegue logo. Que o Natal, o impeachment, o Carnaval, as novas eleições, o fim da recessão ou seu agravamento catastrófico se concentrem numa data única e derradeira.

    "O tempo vai comendo a vida", dizia Baudelaire, "e o obscuro inimigo que nos rói o coração/ com o sangue que perdemos se alimenta e fortalece". Pode ser. O contrário também é verdade. Somos comedores de tempo, devoramos os dias futuros, numa antecipação insaciável que nos impede de viver. Aceita um panetone?

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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