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    Marcelo Coelho

    O tronco e a flor

    04/11/2015 02h00

    A imagem causa impacto, logo na entrada do Centro Cultural Banco do Brasil (r. Álvares Penteado, 112). Trata-se de uma orangotanga ou babuína, com longos cabelos de mulher e olhar meio magoado, meio triste, amamentando um bebê humano.

    Dando a volta na escultura, uma confusa massa de entranhas e órgãos se revela no traseiro do bicho. O efeito dessa peça hiperrealista, em tamanho natural, passa da simpatia algo incômoda para o horror.

    A artista australiana Patricia Piccinini é inegavelmente boa em produzir as duas coisas. Crianças bonitinhas, muito mais perfeitas do que a boneca mais perfeita, interagem com horríveis bichos mutantes. Num vídeo, flores desabrocham –mas reproduzem, em seus pelos e orifícios de carne crua, uma sexualidade humana deformada, faminta, repulsiva.

    A extrema preocupação em causar estranheza, presente em toda parte na exposição "ComCiência", prejudica a meu ver a qualidade artística das obras de Piccinini. Sente-se que ela se inspirou nas esculturas de seu conterrâneo Ron Mueck, também virtuose na reprodução da pele, das mucosas e dos olhos humanos em esculturas quase vivas no seu sono de morte e no seu isolamento mudo.

    Só que Ron Mueck é mais sutil, apesar da sua total aposta no realismo. Altera as dimensões dos seus modelos –criando, por exemplo, um velho deitado ligeiramente menor do que deveria ser na realidade, o que nos distancia dele ao mesmo tempo em que sua semelhança com um ser vivo exerce sobre nós uma forte atração.

    Outras vezes, o rosto gigantesco de um homem adormecido parece querer revelar alguma verdade sobre nós mesmos –e quanto mais clara e reconhecível a reprodução dos traços humanos, mais o mistério se aprofunda. A máscara é só máscara, sem nada por trás; o que se oculta, perguntamos, quando tudo é só aparência?

    De Ron Mueck (cujas obras já foram expostas na Pinacoteca do Estado) para Patricia Piccinini, há um acréscimo de "conteúdo" e uma diminuição no nível artístico. A flora e a fauna de Piccinini podem-se associar facilmente –como sugere o título da mostra no CCBB– ao mundo das mutações genéticas e das manipulações da biologia.

    Ao mundo da ficção científica, por certo. As criações da artista caberiam perfeitamente num filme americano, e é de se pensar se Hollywood não faria até melhor. Os monstros que aparecem na série "Senhor dos Anéis" não são muito diferentes nem inferiores em imaginação aos da artista australiana.

    Em especial se aparecerem sozinhos. Os momentos mais poéticos no CCBB provavelmente se resumem àqueles em que a escultura se aproxima de uma narrativa, referindo-se às fantasias da infância.

    Um menino bem pequeno joga de lado seu ursinho e dorme aconchegado num monstro cascudo e ulcerado. Uma criança de olhos brilhantes se encanta com uma espécie de marmota deformada, enquanto um pavão empalhado, bem real, se equilibra no espaldar da cama.

    Há acolhimento, quando deveria prevalecer o medo. A beleza do pavão não é capaz do amor que a aberração genética quer nos oferecer. Não há ameaça ali, apesar de toda a feiura.

    O poeta William Butler Yeats (1865-1939), já sexagenário, narra sua experiência ao visitar uma escola infantil. Que mãe, pergunta ele, com a criança no colo, reconheceria o filho várias décadas depois, transformado num espantalho caquético?

    Mesmo a filha do cisne, continua Yeats pensando em Leda, a bela semideusa grega, guarda algum desengonço de sua herança palmípede.

    Mas quem, pergunta o final de "Among School Children", pode separar a raiz do broto, o tronco e a flor numa castanheira que cresce? "Corpo entre sons, ó chispa repentina", diz a tradução de Paulo Vizioli (Companhia das Letras), "como apartar da dança a dançarina?"

    O monstro e a criança seriam a mesma entidade nas esculturas de Piccinini. Custo a convencer-me disso. Mas vejo os visitantes da exposição tirando "selfies" ao lado das mais repulsivas imaginações da artista.

    Quem visse a foto, com um humano imóvel ao lado do terno bicharoco, talvez pensasse que ambos são parte da obra em exposição –de tal modo as esculturas de pessoas parecem pessoas reais.

    Por mera necessidade de registro, por brincadeira ou gosto, o retratado se inclui no retrato. Não se reconhece "no outro" –mas, de alguma forma, parece contente de estar ao seu lado.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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