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    Marcelo Coelho

    Namoros na política

    16/12/2015 02h00

    Achei irresistível, embora de gosto duvidoso, comentar o sururu entre José Serra e Kátia Abreu, em festa de confraternização na casa do senador Eunício Oliveira, na última quarta (9).

    A bebida jogada no rosto do senador tucano fez a alegria das redes sociais, cabendo menção a duas piadinhas obviamente anti-serristas. A primeira mostra uma careta do atingido, reclamando não se tratar de um "Bordeaux" de boa safra; a segunda menciona o perito convocado no caso da bolinha de papel jogada contra Serra na campanha de 2010, cogitando de sua eventual participação numa denúncia por tentativa de afogamento em taça de vinho...

    Há algo de menos engraçado, entretanto, nesse regozijo com a reação de Kátia Abreu. Parte da esquerda celebra o mau bocado de Serra simplesmente porque ele pertence ao campo adversário –e eis que uma velha inimiga, tratada de ruralista, latifundiária, inimiga do meio ambiente durante anos a fio, torna-se (como a própria Dilma) "guerreira do povo brasileiro".

    É difícil dizer se a circunstância justificava a reação de Kátia Abreu. O senador tucano teria, segundo os relatos disponíveis, chegado sem esta nem aquela à rodinha em que a ministra da Agricultura conversava e dito que ela tinha fama de namoradeira.

    Ofendida, Kátia Abreu joga o vinho na cara de Serra. "Ela se casou neste ano", teria advertido, em pânico, o presidente do Senado, Renan Calheiros.

    Não sei com que tom de voz a frase foi pronunciada, o quanto se tinha bebido na festa, nem com que frequência José Serra se compraz em comentários irônicos ou abusivos contra seus colegas.

    Considera-se, por exemplo, que Aécio Neves perdeu votos ao chamar Dilma Rousseff de "leviana" num debate. A afirmação nada tinha a ver com o comportamento amoroso da presidente –é leviano quem assume compromissos irrefletidamente, ou fala sem pensar. Parece que em alguns ambientes e lugares do país a palavra tem o mesmo sentido atribuído ao "namoradeira" de José Serra.

    Divulga-se, em velada defesa do tucano, um perfil publicado na revista "Claudia" em 2013, no qual a própria Kátia Abreu diz ter "namorado muito" no passado. O que não é a mesma coisa, cabe admitir, do que se dizer "namoradeira".

    Sem conhecer todos os antecedentes do episódio, procuro entretanto comentar algo do contexto geral em que aconteceu.

    Estive com Serra em alguns jantares e situações informais; ele é muito calmo, inteligentíssimo e sedutor. A voz é baixa, o olhar não se desvia, e ele não economiza confidências –criando com isso um ambiente de imediata intimidade.

    Ao mesmo tempo, todo mundo sente que não há apenas inteligência, mas cerebralismo, e não apenas calma, mas sangue-frio, em sua aparência –a carreira pública, os olhos, a testa, que sei eu, transmitem um quê de intencionalidade permanente em sua "démarche". Se algo que ele disser puder ser levado a mal, será. Pessoalmente, acho isso injusto, mas não sou nem mulher nem político.

    Some-se a isso a cultura brasileira mais ampla, de que a frase de Renan Calheiros é exemplo significativo. Não se chama de "namoradeira" uma mulher casada.

    "Ah, ah, senador, ouvi dizer que o senhor não resiste a um rabo-de-saia...! He, he, he, ho, ho, ho, isso são as más línguas..." Ninguém se importaria em saber se nosso Don Juan de Brasília é casado ou solteiro.

    O atraso da mentalidade brasileira nesse ponto é patente. Isso não elimina, claro, o potencial ofensivo de se usar o termo "namoradeira". Mesmo acreditando que uma mulher, casada ou não, possa namorar quem quiser –porque não vou julgar seu caráter em função disso– posso querer desqualificá-la chamando-a assim.

    Seja como for, a hostilidade latente na política brasileira não se resume ao desentendimento entre um Serra e uma agricultora. É possível que, do ponto de vista individual, todo político que não for um crápula completo esteja vivendo contradições insuportáveis.

    Dilma tenta fazer uma política econômica de que discorda, Kátia Abreu assume posto ao lado de petistas e movimentos sociais que a abominavam, Serra sempre bufou contra os excessos ortodoxos dos tucanos. A esquerda se alia com a direita, a direita se envergonha do neodireitismo que precisa bajular.

    A política anda muito "namoradeira", com efeito –natural que as cenas e os sururus se multipliquem, numa tentativa de salvar-se a honra que ainda sobra.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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