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    Marcelo Coelho

    Leilões

    23/12/2015 02h00

    À medida que a família vai diminuindo com o tempo, diminui também o número dos presentes de Natal a dar e receber. As novas gerações, mais práticas, dispensam vastas distribuições e as longas horas no shopping que já passei na juventude, a imaginação exausta de tanto pressupor necessidades que no fundo ninguém tinha.

    Para quem me dá presentes, a dificuldade deve ser ainda maior. Em matéria de livros e CDs, sou um caso dos que "já têm tudo" e, em matéria de roupas, dos que desejam pouca coisa. Talvez cuecas.

    Sou bastante consumista, em benefício próprio ou de algum presenteado. Com uma ressalva: compro muita coisa, é certo, desde que barata.

    É verdade que de uns dez anos para cá andaram inflacionando o comércio de livros usados, mas algumas ofertas se equiparam, afinal, a levar a mercadoria de presente. Oitocentas páginas de poesia italiana por R$ 10, ora essa, algum dia eu leio tudo. Não contabilizo o preço das estantes.

    Vale tudo, como sabemos, para enrolar diante do computador. Ultimamente tenho frequentado sites de leilões, como o iarremate.com ou o leiloesbr.com.br. Todo dia, umas seis ou sete empresas especializadas dão cabo do que houver de velharia: quadros sem assinatura, bandejas de acrílico, almofadas de courvin.

    Já levei coisas interessantes a preço baixo. Livros pulverizados da época em que minha mãe era criança, por exemplo. Ainda não achei o atlas que mostrava metade do Estado de São Paulo como terra sem cidades, indicando vagamente os ermos dos aimorés.

    Mas já topei com o maravilhoso "Sílvia Pélica na Liberdade", de Alfredo Mesquita, com ilustrações simplíssimas, mais elementares que o traço de Belmonte. A menina fazia uma longa viagem de tílburi para instalar-se num casarão no bairro (que ainda não era japonês), onde as negras da criadagem (nem se pensava em outros termos) tiravam-lhe o sono com as mais absurdas e engraçadas histórias de assombração.

    Não havia muita "aventura" nas histórias desse tempo. "Memórias de Pery", narradas em primeira pessoa pelo cachorro da família Souza Queiroz, ironizava o feroz nietzschiano que, chefe da casa, era o verdadeiro autor do livro, assinando sob o pseudônimo de "E. Muroz". As crianças brincavam de enterrar os mortos da gripe espanhola.

    São outros mortos agora, o desses sites de leilões. Conforme o dia, escavo as lembranças de alguma senhora judia, sua menorá de sete braços, suas estolas de raposa e caixinhas de madrepérola. Ou a herança enfática do ex-integralista, pesada de comendas militares e livros sobre a ameaça soviética. Também as sobras da biblioteca de alguém que confiou na cura do câncer pelo consumo de limão.

    A melancolia de tudo se anula, entretanto. Em primeiro lugar, graças à linguagem desses sites, impregnada de um comercialismo que raia a ingenuidade.

    "Magnífico" par de maçanetas de louça. "Importante" cinzeiro de Murano. "Raro e secular" cachepô marajoara. "Espetacular" tapeçaria com motivos árabes. "Interessante" abajur de inspiração africana. "Preciosa" estatueta em "pura resina espanhola".

    Quantos quadros de palhaços lacrimosos para um Eliseu Visconti de atribuição contestada! Quantos gatos malhados de louça para um Gallé com rachaduras... Mas tudo tem seu valor.

    Penso na casa das velhas tias, sempre na penumbra, reproduções escuríssimas de Millet em cima do telefone de baquelita, o vasinho de cristal fosco, o veludo da cadeirinha onde ninguém se sentava, tudo na cor do âmbar ou do verde-escuro, como que produzindo ao longo dos anos pacientes camadas de silêncio.

    O que foi comprado e recebido, certo dia, porque pareceu bonito, sobrevive a tantos donos. Nunca irá de volta à vitrine das lojas. Mas ainda se expõe à venda, como as antigas estrelas do rádio e da TV ainda fazem seus shows em clubes do interior. Continuam a encantar seus admiradores. Há vida, e não simplesmente morte, em tudo isso. O vidro de Lalique, a capa dourada e vermelha do dicionário, a safirazinha do prendedor de gravata não perderam muito do seu brilho.

    A estatuazinha art déco de Diana com seu arco (a flecha se desfez há muito tempo) continua perseguindo a corça dos pés de bronze. Continuamos perseguindo o ano que vem, a semana que o precede, as vésperas, a noite de Natal, e o dia do próximo leilão.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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