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    Marcelo Coelho

    Mar revolto

    06/01/2016 02h15

    Antes de começarem a falar nos Brics, floresceu brevemente o nome "países-baleia". Eram, grosso modo, os mesmos: Brasil, Rússia, Índia, não sei se China, talvez México.

    Aí pelo final da década de 1980, o fenômeno a destacar não era a importância das economias "emergentes", mas sim o tamanhão de países com grande presença estatal e pouca agilidade para se adaptar às realidades da globalização.

    Não sei se estamos voltando à condição de "país-baleia", ou se algum dia fomos coisa diferente. Mas lembrei do termo ao ver o filme "No Coração do Mar", de Ron Howard, ainda em cartaz na cidade.

    Digo "ainda" porque as críticas que li não foram nada boas. Sem dúvida, os diálogos são um bocado elementares, os atores são normaizinhos e falta maior sentido de clímax e suspense nessa história de marujos perseguidos por uma baleia gigante assassina.

    Sim, é a história de "Moby Dick", ou melhor, é a história do barco baleeiro "Essex", tal como contada a Herman Melville (Ben Whishaw) por um sobrevivente da tragédia (Brendan Gleeson), poucos anos antes da publicação do famoso romance.

    Os ataques da baleia branca não funcionam muito bem no filme. Afinal, um bichão daqueles não tem como se esconder de suas vítimas nem precisa manobrar muito para atingir seu objetivo. Sustos, surpresas e variações nos instantes de perigo contam pouco nessa aventura.

    E, para quem anda viciado na série "The Walking Dead", como eu, as abominações e extremidades vividas pelos náufragos do filme impressionam pouco ao lado dos problemas causados pelo predomínio dos zumbis sobre a face do planeta.

    Para mim, o que conta em "No Coração do Mar" é a beleza, não tanto das paisagens, das ondas enormes e do céu, mas dos antigos barcos a vela quando se lançam ao mar.

    Apesar dos riscos da viagem, há euforia e grandeza na hora de partir -algo que o diretor Ron Howard transmite bem, com cortes rápidos, gritaria, velas que desabam, cordames que se rompem.

    Sempre bom relembrar, ademais, as clássicas ordens do capitão do barco nesse tipo de história: "Içar a bujarrona! Baixar a vela da mezena!" Não entendemos nada; o vento, sim.

    Empreendimentos coletivos têm muito de bonito e emocionante -e isso vale, infelizmente, tanto para a reação de um time de futebol quanto para um ataque militar.

    Confusão e ordem, planejamento e improviso, articulação de todos e ímpeto de cada um se constituem em obra humana, e esta se expressa não num produto, mas em ação; é "práxis", não "poiesis".

    Também o produto, em todo caso, existia para os marinheiros do filme. Era o óleo de baleia: gostei de ver, ali mesmo nas docas, uma bolsa de valores em plena febre, especulando com os diferentes preços do combustível, conforme viessem de cachalotes ou gigantes azuis.

    A ironia de "No Coração do Mar" é que, quanto mais sacrificada se torna a caça às baleias, mais se aproxima o momento em que será descoberto um substituto para o óleo assassino.

    Em meados do século 19, o petróleo viria a dispensar tanta matança de mamíferos a serviço da iluminação e do progresso das cidades do Ocidente.

    Depois de 150 anos, talvez esteja chegando a hora em que as torres, os oleodutos e as refinarias conhecerão o mesmo destino das baleias, dos marujos e seus arpões.

    Fontes mais limpas de energia são pesquisadas, com sucesso, em toda parte. Numa reação esperada, os exportadores de petróleo baixaram barbaramente o preço do produto, de modo a tornar desvantajoso o investimento em soluções alternativas.

    Sentados no pré-sal, o Brasil e a Petrobras revisitam, nesse aspecto pelo menos, sua condição de baleias -ainda que em outros países, como a Venezuela, a situação seja incomparavelmente pior.

    O barril de petróleo estava a mais de US$ 100 em 2014, e baixou para US$ 37 agora. Nenhuma atitude de governo, por si só, resolve uma tempestade desse tamanho.

    Dito isso, o ano começa com uma crise séria entre Arábia Saudita e Irã; o preço do petróleo dá pinotes como um filhote de baleia.

    Num raciocínio, ficará mais baixo —porque os dois países vão extrair o máximo que puderem para se fortalecer. Em outro raciocínio, vai subir -porque um novo conflito na região há de comprometer a oferta do produto.

    E o Brasil, velha baleia, não sabe se submerge mais ou se levanta para respirar.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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