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    Marcelo Coelho

    Notícias da Coreia do Norte

    13/01/2016 02h01

    O estado do mundo já estava dando -como sempre- suficientes razões para alarme e preocupação. Vem agora a notícia de que a Coreia do Norte realizou seu primeiro teste com uma bomba de hidrogênio.

    Os especialistas duvidam: há de ser, no máximo, um artefato atômico normal, "turbinado" com traços de bomba H. Antes concentradas sobre o Estado Islâmico, as atenções do mundo democrático retornam ao problema coreano, esquecendo-se quase definitivamente da Ucrânia, sem saber o que esperar do Iêmen ou do Burundi.

    Embora tenha nítidas características de uma escalada armamentista, a nova bomba de Kim Jong-un talvez não traga maior risco de desestabilização internacional.

    É só um palpite, claro, mas acho improvável um horizonte expansionista para a Coreia do Norte. De que modo poderia impor o próprio modo de vida sobre vizinhos incomparavelmente mais desenvolvidos?

    Se você pensa que aquilo é uma ditadura totalitária de esquerda, liderada por um bebê psicopata, está certíssimo. Só que há mais. Vale a pena ler "Nada a Invejar", livro da jornalista Barbara Demick sobre o cotidiano na Coreia do Norte. A autora constrói a narrativa em torno de histórias de vida, e seus personagens são tratados com grande simpatia.

    Rebelde desde menina -cometia a ilegalidade de andar de bicicleta-, Mi-ran acabou fugindo para a Coreia do Sul, e é a primeira figura a ser apresentada no livro de Barbara Demick. Nascida em 1973, Mi-ran deixou um namorado no norte. Conheceu-o quando tinha 12 anos. Só tocou as mãos dele depois de três anos; outros seis se passaram até o primeiro beijo.

    Nos filmes de propaganda a que Mi-ran assistia, beijos eram impensáveis. A coisa mais perto disso, conta o livro, foi a cena final de uma história em que o herói se aproxima da mocinha para beijá-la.

    Esta inclina o guarda-chuva sobre o rosto, de modo a proteger-se de qualquer indiscrição da câmera. Dada a insinuação, o filme foi proibido para menores de 17 anos.

    Pelo que se lê nos relatos de "Nada a Invejar", o totalitarismo stalinista se combina, na Coreia do Norte, com um sistema típico das sociedades mais tradicionais.

    Comentei outro dia um box de DVDs de propaganda soviética. Uma das poucas coisas positivas, em meio a tantas apologias a Stalin, é que se enaltecia também a independência da "nova mulher" trabalhadora, sem pais e avós a quem dar satisfações.

    Na Coreia do Norte, a mãe que não der à luz filhos homens está em péssima situação. Barbara Demick fala de uma mulher que, depois de ter uma menina, foi bem tratada pela sogra, que lhe preparou a tradicional sopa de algas reconstituinte. No segundo parto, nasce outra menina. A sogra joga as algas na cara da nora: "Agora, quem faz a sopa é você mesma".

    Enquanto isso, o namoro de Mi-ran -que até os 26 anos ficou sem saber como nascem os bebês- não dava sinais de ter muito futuro. Ela e o rapaz pertenciam a castas diferentes.

    Castas, esse é o termo. No suposto "socialismo" da Coreia do Norte, estabeleceram-se minuciosamente cinquenta e um estratos sociais diferentes. De modo mais geral, há três divisões básicas, que se mantêm por hereditariedade.

    O sistema foi estabelecido pelo primeiro ditador comunista, Kim Il-sung,em fins da década de 1950. Seguia o critério da "confiabilidade política", criaram-se as categorias de "classe central", "classe oscilante" e "classe hostil".

    Prostitutas, curandeiros, donos de imóveis, antigos combatentes do lado sul-coreano, budistas, católicos e adversários em geral, com seus parentes, filhos e netos, foram classificados na classe hostil, encarregando-se dos piores trabalhos ou sendo conduzidos a campos de concentração.

    O curioso é que o sistema educacional da Coreia do Norte é extremamente exigente e competitivo. Barbara Demick conta que estudantes excelentes e dedicados, com os primeiros lugares no final do ensino médio, veem-se de repente barrados de qualquer futuro. Não sabiam que seus pais ou avós, por algum motivo, pertenciam à "classe hostil".

    É uma contradição e tanto, dentro do próprio sistema. Só o terror pode impedir que frustrações como a desses estudantes venham à tona. A experiência do Muro de Berlim deve ter ensinado alguma coisa aos tiranos da "classe central". Kim Jong-un se defende. Mas um sistema desses termina caindo por si mesmo: simplesmente não funciona.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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