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    Marcelo Coelho

    Viagem a Timbuktu

    20/01/2016 02h00

    Nas fotos de antigamente, as pessoas quase nunca sorriam. Ainda sou do tempo em que RG e passaporte não admitiam outra coisa do que o rosto de um indigitado, de um criminoso, de um idiota, de um caso médico: não éramos nós mesmos, apenas o registro de nossa existência física.

    Dizem que para alguns índios tirar o retrato equivale a roubar a alma. Os índios estavam certos. Pelo menos nas fotos de documento, nossa alma já tinha ido embora assim que nos sentássemos no banquinho do feiticeiro, eretos como diante de um pelotão de fuzilamento, entre guarda-chuvas e tripés, enquanto o responsável pelo disparo ("shot", em inglês) se escondia atrás de um capuz negro de carrasco.

    A seriedade dos citadinos não é nada, entretanto, perto do que os antigos africanos eram capazes de aparentar. As fotos que Edmond Fortier (1862-1928) tirou no Senegal, na Mauritânia e em outros países da África Ocidental estão em exposição até domingo que vem no Instituto Tomie Ohtake.

    Como não sou grande fã de Frida Kahlo (outra figura séria como uma fotografia em seus autorretratos rígidos), fiquei mais atraído por essa mostra, realizada no mesmo espaço, que vem junto a um livro detalhadíssimo de Daniela Moreau, narrando desde as andanças do fotógrafo francês até os detalhes dos costumes, trabalhos e tristezas dos povos que ele retratou.

    Mesquitas de barro, impostos pagos em peças de tecido, gente pescando em pântanos com água até o pescoço, crianças em trapos extraindo borracha de cipós: as fotografias datam de começos do século 20, mas quase todas parecem perdidas num tempo que nunca existiu.

    O domínio colonial fazia-se notar sem os arremedos de civilização de cidades como Saigon ou Argel. Um cartão postal de Dacar em 1900 e nada poderia até passar por um aspecto de Cananeia. Mas do palácio de Aguibu, rei de Bandiagara, atual Mali, até a sede administrativa dos franceses em Toumanea, na Guiné, a escolha é entre o adobe e o sapé, numa pobreza de dar pena.

    Quem viu o filme "Timbuktu", de Abderrahmane Sissako —que parece tão real quanto um documentário— sabe que a paisagem e arquitetura não mudaram muito naquelas imediações do Saara. A não ser pela presença de uma nova colonização, a do banditismo fundamentalista islâmico.

    Nas fotos de Edmond Fortier, o colonizador francês é uma espécie de presença ausente. Numa chalupa miserável, encostada na areia do Níger, balança desanimadamente a bandeira tricolor. À sombra de uma árvore colossal, um jovem de bigode e camiseta branca equilibra sobre uma mesinha seus livros de recenseamento. É tudo.

    Restam os africanos, em sua nudez nativa, posando como ídolos de um culto já extinto diante da câmera desolada de Fortier. Cenas de dança e de "tam-tam" reúnem um punhado de homens, raramente atléticos, em torno de um espaço de areia cinza.

    O poderoso chefe de Toumanea, encarapitado num jumento, se faz acompanhar de dois cortesãos soturnos, cada qual segurando uma rabequinha mínima, da qual nenhum som jamais parece ter saído.

    Toda fotografia, naturalmente, é silenciosa. Aqui, o silêncio parece anteceder o momento do retrato; europeus e africanos nunca se falaram, e mesmo a festa, o mercado, a guerra, parecem abafados sob a prensa de chumbo do sol.

    Negros carregando sacos nas costas, a abertura de uma estrada de ferro, uma expedição de caçadores de elefantes, não há nas imagens o tom épico de Sebastião Salgado.

    A nitidez, quase que de gravura em metal, das fotos de Edmond Fortier carrega outro peso, e outra realidade. Produzidas com o formato de cartão postal, sua estética é a dos antigos museus de antropologia: a raça é o que está em jogo, é o que espanta e fascina.

    Raça: nesta mera palavra já existe um eco de morte. Pessoas vivem; culturas dançam; tribos guerreiam; povos se encontram, entram em conflito ou se misturam. Quando o olhar de alguém destaca "a raça", entretanto, é como se estivesse medindo crânios e tíbias.

    A origem, a cor de cada pessoa acarreta, como se sabe perfeitamente no Brasil, injustiças absurdas, irracionais, tremendas. "Cor" me parece um termo adequado para tratar desse problema. "Raça" me dá medo —a menos que, pelo uso positivo mais recente, a conotação venha a mudar.

    É possível; o mundo talvez já não seja mais tão triste. Aprendemos até a sorrir nas fotos de documento.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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