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    Marcelo Coelho

    O decanter em questão

    09/03/2016 02h00 Erramos: esse conteúdo foi alterado

    Mudam as tecnologias e aumenta o acesso à informação, mas continua a existir um componente clássico, quase arcaico, em toda luta política: trata-se da retórica, da pura retórica.

    Depois de tantos anos de desarticulação com Dilma Rousseff, e com uma oposição tampouco especialmente brilhante na hora de fazer discurso, tive um choque ao ver Lula na TV, depois de seu depoimento na Polícia Federal.

    Foram uns 15 minutos ou mais de transmissão ao vivo pela Globo News. O ex-presidente transformou a humilhação e as suspeitas que recaem sobre ele numa verdadeira festa. Reunificou, ao menos por enquanto, a militância, o PT e o governo numa espécie de grande caldo emocional. A dúvida é saber o quanto engrossa.

    Exagerando no português popular, comendo o "s" nos plurais, e sobretudo com uma arte invejável no que se refere a manter o bom humor, Lula desviou-se da questão jurídico-policial em jogo.

    Tudo indica que houve de fato favorecimento de empreiteiras às propriedades que ele diz não serem dele. Concordo também que existe, no momento, o fenômeno da "indignação seletiva" -toma-se o PT como o único ladrão do país, quando certamente as campanhas de outros políticos são financiadas da mesma forma.

    O fato é que a luta política se descola dos próprios argumentos que utiliza. Lavagem de dinheiro, corrupção, Petrobras, caixa dois são fatos verificáveis com razoável grau de precisão.

    No mundo da retórica -que Lula domina-, o caso é outro. Num tempo em que os promotores públicos ainda nem sonhavam em trabalhar, conta o ex-presidente, Marisa já vivia de seu salário como empregada doméstica... E ainda era criança.

    É preciso dar um tempo para se aperceber de que há nisso enorme dose de manipulação emocional.

    Sem querer, Lula, a meu ver, se denunciou quando resolveu insistir no truque e contou a história do decanter, ou "decânti", como ele pronunciou a palavra, forçando a aparente ignorância.

    Não duvido que ele não goste de vinhos, e tenha pouco interesse em diferenciar um Miolo de um Romanée Conti, como disse na televisão. São os amigos, continuou, que aparecem com essa mania. Alguém presenteou o casal com o tal decanter, e dona Marisa, sem saber do que se tratava, utilizou-o como se fosse um vaso de flores.

    Não há lógica nenhuma em deduzir, da simplicidade de seus hábitos de consumo, do preço do pedalinho ou de outros pormenores tocantes, a incorruptibilidade de Lula. Pode-se dizer simplesmente, e com uma crueldade que não é injusta, que a corrupção varia de preço.

    As "elites", prossegue Lula, não se conformam em ver um operário sem instrução chegar ao andar de cima. Acho que, de fato, existe muito preconceito gratuito em cima dele. Piadinhas sobre o dedo, sobre o fato de não saber inglês, de não ter diploma... Mas tampouco essas coisas lhe dão atestado de inocência.

    O decanter me incomoda. Ainda que Lula não esteja ligando para vinhos, parece claro que desde Duda Mendonça não faltam bons de bico no círculo mais próximo do ex-presidente.

    Aí é que a perversidade social brasileira (e talvez não só brasileira) se manifesta com toda força. Lembro quando a revista "Vogue", há uns 30 anos, teve a ideia de mostrar um Lula chiquérrimo, de terno preto, na capa de uma edição.

    Estava em curso o processo de "refinar" o então líder metalúrgico. Para que o PT deixasse de ser um conjunto de malucos e radicais, era preciso criar uma imagem mais "light", e mesmo mais "burguesa" da agremiação.

    Foi esse o sentido de Duda Mendonça e suas garrafas de Romanée Conti. E viria a ser esse o sentido das boas relações com Collor, Maluf, Odebrecht, bancos e o que mais se queira.

    As "elites" se deram até bem demais com Lula e o PT. Preferem outros? Com certeza. Só que, excetuados alguns bolsões "autênticos", o PT privilegiou um projeto de aproximação com os poderes constituídos, distribuindo renda, mas não força política, para os "de baixo".

    A retórica tem sempre um fundo de verdade. Lula diz que as elites não aceitaram a sua ascensão pessoal. E é disso que se trata. Não uma reforma política e social mais ampla, mas o projeto de ascensão de um grupo, feito a preço relativamente compensador: recompensas simbólicas e materiais aos de baixo, e mais ou menos a mesma coisa para os que lideraram a empreitada.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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