• Colunistas

    Saturday, 04-May-2024 01:48:57 -03
    Marcelo Coelho

    Para além das pedaladas

    29/03/2016 02h00

    O novo pedido para o afastamento da presidente Dilma Rousseff, que foi encaminhado nesta segunda (28) pela OAB à Câmara dos Deputados é bem mais sereno e mais claro do que o assinado por Hélio Bicudo, Miguel Reale Jr. e Janaina Paschoal, atualmente em exame na comissão especial do impeachment.

    Aquele primeiro documento juntava coisas demais. Dizia, por exemplo, que "Lula nunca saiu do poder" e que, se Dilma é "indissociável" do ex-presidente, "muito provavelmente sabia que ele estava viajando o mundo por conta da Construtora Odebrecht".

    Não é preciso ser formado em Direito para perceber que um "muito provavelmente" diz pouquíssima coisa em termos de fundamentação legal.

    Mas, como se sabe, o forte do pedido estava na questão das "pedaladas fiscais" e em outras irregularidades na gestão do Orçamento.

    Cite-se a liberação de R$ 10 bilhões num momento em que o governo já sabia que era incapaz de cumprir suas metas de controle do deficit. São esses, aliás, os pontos acolhidos pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ).

    O pedido da OAB repete esses argumentos, de forma concisa. Seu autor, o advogado Erick Venâncio Lima do Nascimento, coloca aliás em dúvida a tese de que só as pedaladas do segundo mandato poderiam motivar o "impeachment".

    Mas seu principal fundamento está dois outros fatos, mais recentes, que podem dar início a um novo processo.

    O primeiro se refere à delação premiada de Delcídio do Amaral (MS), ex-líder do governo no Senado. Segundo Delcídio, Dilma tratou com ele da nomeação de um novo ministro no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), Marcelo Navarro.

    Era um dia bonito de sol, rememora Delcídio, quando ele e Dilma conversaram no jardim de trás do Palácio da Alvorada.

    "Sentiu", diz o senador em seu depoimento, "que Dilma estava em dúvida se Navarro tinha consciência do 'compromisso' que estava disposto a assumir."

    Delcídio prontificou-se a conversar com Navarro. O interesse do governo era que o novo magistrado agisse com celeridade no processo, e tirasse da cadeia alguns presos da Operação Lava Jato.

    Dilma recomendou a Delcídio que examinasse quais as reais intenções do futuro juiz e se iria de fato assumir seu "compromisso".

    Delcídio fez o que a presidente lhe pediu, e voltou com a certeza de que Navarro tinha entendido o recado.

    O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, assegurou-lhe que já havia acordo para aprovar sem problemas a indicação de Navarro no Senado, como de fato aconteceu.

    "Já nomeado", diz o pedido de impeachment, Marcelo Navarro foi o único a votar no STJ pela libertação dos empreiteiros Marcelo Odebrecht e Otávio Márquez de Azevedo, ficando vencido no tribunal.

    Dilma refuta o que foi dito na delação premiada, mas para a OAB o posto de líder do governo no Senado e o comportamento posterior de Navarro conferem credibilidade à narrativa de Delcídio.

    O segundo fato apontado pela OAB é a nomeação de Lula para o Ministério da Casa Civil.

    Mesmo sem levar em conta as conversas telefônicas entre Dilma e o ex-presidente, houve pressa suspeita naquela nomeação.

    Por que fazer uma edição extra do Diário Oficial para efetuar a nomeação? Pelo decreto 4.520 de 2002, que rege as publicações do governo, edições extras só se justificam em "casos excepcionais, nos quais esteja presente relevante interesse público".

    Que "interesse público" relevante e inadiável estava em jogo?, pergunta a OAB. Tratava-se apenas de "manipulação de foro", para evitar que o juiz Sergio Moro continuasse a tratar do caso de Lula.

    Crimes de responsabilidade, lembra o autor do pedido, não se confundem com crimes comuns.

    A denominação não significa considerar a presidente uma "criminosa" –aplica-se apenas à esfera político-administrativa.

    Trata-se, agora, de atentado "contra o livre exercício do Poder Judiciário" e o "cumprimento das leis e das decisões judiciais" (artigo 85, itens II e VII da Constituição).

    Um caso novo, portanto, para além das questões orçamentárias.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024