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    Marcelo Coelho

    Do golpe à conspiração

    06/04/2016 02h00

    Como várias pessoas da minha idade (57 anos), lamento o fim das videolocadoras. Ainda não me acostumei a sistemas do gênero Netflix e, para mim, já foi uma grande concessão —prazerosa, admito— preferir o DVD em casa às salas de cinema.

    Mesmo assim, a melhor locadora que conheci ainda manda e-mails, com ofertas de venda. Trata-se da 2001 Vídeo (que tenha longa vida), volta e meia fazendo liquidações de filmes seminovos por bagatelas que chegam à tristeza de R$ 9,90.

    Eis a maravilhosa sinopse de um desses "clássicos" do cinema barateados até o desespero. Estamos falando de "O Homem de Cinzento" ("The Man in Grey", de 1943).

    Duas mulheres têm suas vidas entrelaçadas de maneira estranha.

    Clarissa (Phyllis Calvert) se casa com o marquês de Rohan (James Mason), um homem que a trata com cruel indiferença. No entanto, sua amiga Hesther (Margaret Lockwood) a apresenta a outro canalha, o atrevido e imoral Rokeby (Stewart Granger). Logo, as duas trocam de parceiros, e as coisas vão se desenvolvendo da pior forma possível.

    Que maravilha esse final de texto: "as coisas vão se desenvolvendo da pior forma possível"!

    Não sei se vou ver o filme: detesto melodramas, mas o estilo do texto, aliando o máximo de franqueza ao óbvio dever de manter-se vago, já mereceria um Oscar do gênero.

    As coisas se desenvolvem da pior forma possível! Eis um bom prognóstico a respeito do drama do impeachment, em que uma mulher (a República) casou-se com um partido que a trata com indiferença (o PT, e estou sendo complacente nisso), até que uma amiga (a Operação Lava Jato) a apresenta a outro canalha (o PMDB).

    A conclusão é lógica. As duas trocam de parceiros, e as coisas se desenvolvem da pior forma possível.

    Há uma matemática perversa no impeachment. Dilma Rousseff pode se safar da condenação dando cargos a siglas menores, que lhe assegurem os 172 votos necessários para barrar o processo na Câmara.

    Mas precisará de mais votos para assegurar a aprovação de qualquer medida do governo.

    Suponha que você seja um deputado sem escrúpulo nenhum. Apoiará a presidente por ordens do seu partido microscópico em troca de algum cargo federal. Dilma vence a batalha do impeachment.

    O que acontece? Seu partido microscópico conhecerá um imediato decréscimo de valor. O ministério que você ganhou num momento de pânico, haverá de ser tirado de você, retornando ao partido que possa garantir "governabilidade" daqui para a frente.

    Você pensa: melhor entrar na onda do impeachment e buscar vantagens num futuro governo Temer.

    Mas é possível que Temer e o PMDB não lhe dediquem mais do que desprezo. Confiando que tenham votos suficientes para o impeachment, não haverão de entregar-lhe nada em troca, nem antes nem depois.

    Mas será que confiam? Ninguém sabe, neste momento, qual o resultado do jogo. Tudo depende do amor ao risco.

    Se eu fosse o líder canalha de um partido minúsculo, apostaria em apoiar Dilma nesta hora, confiando que –em caso de derrota no futuro– poderei aderir, como sempre se adere, a um governo Temer.

    Com vantagens menores, é certo, mas vantagens, mesmo assim.

    Sendo canalha, sei que Dilma respeita menos a fisiologia do que Temer. Mas, se Dilma respeita menos a fisiologia, será que vou continuar com meus cargos se ela ganhar?

    Com essa dúvida, penso em meus eleitores. Querem, provavelmente, o impeachment. Querem, também, a inauguração de um posto de saúde ou a liberação de um crédito qualquer na minha região eleitoral.

    Penso, sobretudo, em mim mesmo. Qual é o presidente com mais condições de barrar a Lava Jato?

    Talvez a Lava Jato seja irreprimível. Mas por que não tentar e investir na alternativa Temer? Dilma não tem poder sobre o processo.

    Olho para o meu lado. Meu eterno rival nas eleições municipais, estaduais e federais é um notório corrupto. Será que a Lava Jato o atingirá antes de mim? Eis a decisão.

    Praticamente todos os partidos, como se sabe, recebem dinheiro de empreiteiras. É simplesmente ridículo defender o impeachment em termos de moralidade pública.

    O que está em curso pode não ser um golpe, mas é um complô. Um complô de velhacos contra uma quadrilha de hipócritas.

    Nada mais que isso. O resto –que diz respeito à sociedade, não aos políticos– fica para outro artigo.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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