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    Marcelo Coelho

    Rito em descompasso

    10/04/2016 02h00

    Resumindo ao máximo: a presidente Dilma Rousseff gastou mais do que é permitido pela lei? E, se isto aconteceu de caso pensado, merece o impeachment?

    Acompanhei as sessões da comissão que cuida do caso na Câmara. Um dia eu me convencia de uma coisa, no outro dia do contrário.

    O relatório defendendo o afastamento da presidente, escrito pelo deputado Jovair Arantes (PTB-GO), é pormenorizado e apresenta os argumentos dos dois lados. Trata-se de leitura chatíssima, mas não há como fugir da tecnicalidade em que se dá o debate.

    O texto começa eliminando muita coisa discutível, tanto por parte da defesa quando da acusação.

    O pedido de impeachment elaborado por Helio Bicudo, Janaina Paschoal e Miguel Reale Jr. fazia acusações sem muita base jurídica quanto ao comportamento de Dilma no petrolão. Ela certamente sabia das irregularidades. Era "unha e carne" com Lula. Um dos envolvidos no escândalo, Paulo Roberto Costa, posou com Dilma "para várias fotografias em eventos públicos, tendo sido convidado para o casamento da filha do presidente, em cerimônia bastante reservada".

    Nesse ponto, tinha-se mais um conjunto de suposições, até razoáveis, mas nada de concreto. O assunto foi descartado por Jovair Arantes, assim como a delação premiada do senador Delcídio do Amaral (ex-PT-MS).

    Desprezaram-se também as reclamações da defesa de Dilma, alegando que Eduardo Cunha, aceitando o pedido, cometeu um "desvio de poder", agindo por "vingança" e "retaliação". Os motivos de Cunha podem ser mesmo estes, mas não constituem razão para que não se examinem eventuais irregularidades da presidente.

    Por ironia, Eduardo Cunha adotou uma tese que é até favorável ao governo. Considerou que só valem, para o impeachment, os atos cometidos por Dilma no segundo mandato. Os autores do pedido sustentam, com boas razões, que o governo foi um só. Jovair Arantes concordou com isso, mas limitou-se a analisar as acusações relativas a 2015.

    São duas as acusações principais.

    A primeira diz respeito a seis decretos autorizando gastos públicos, que Dilma assinou sem prévia autorização do Congresso. Para a defesa, houve apenas remanejamento de verbas e a criação de algumas despesas específicas, que puderam ser feitas porque os órgãos a que se destinavam arrecadaram mais do que o previsto por meio de fontes próprias de recursos (multas, por exemplo).

    O governo afirma que esses decretos não alteraram o limite dos gastos gerais do governo: tiraram dinheiro de um lado, mas economizaram de outro.

    A acusação diz que o governo já sabia que seu orçamento estava estourado. Os decretos foram emitidos em julho e em agosto de 2015. Mas em julho o governo já tinha enviado mensagem ao Legislativo, mudando drasticamente o cálculo do superavit que tinha prometido alcançar.

    Para a defesa, isso constitui prova de que o governo estava sendo realista e que se empenhava em cortar despesas. Para a acusação, é sinal de que o governo, já sabendo de suas dificuldades, gastou "por debaixo do pano".

    O relatório de Jovair Arantes aceitou a tese da acusação. Dilma poderia até mandar uma medida provisória para fazer despesas urgentíssimas, mas feriu a Lei de Responsabilidade Fiscal ao gastar mais do que podia.

    O segundo motivo alegado para o impeachment são as famosas "pedaladas fiscais". O governo deixou que dívidas expressivas se acumulassem junto à Caixa Econômica, o BNDES e o Banco do Brasil. Esses órgãos fazem diversos pagamentos (Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, programas de investimento) junto ao público, que o governo fica de acertar depois. Só que não acertava nunca.

    Outras administrações também fizeram isso, argumenta o governo, e o Tribunal de Contas da União sempre aceitou essa prática. Acontece que o TCU mudou sua jurisprudência a esse respeito, em 2015... como poderíamos saber que estávamos incorretos?

    A opinião do TCU não é decisiva, rebate a acusação. A Lei de Responsabilidade Fiscal, editada em 2000, já queria impedir esses atrasos no acerto de contas, que terminaram levando à falência diversos bancos estaduais. Proibiu-se que bancos públicos façam empréstimos ao governo.

    Mas uma dívida não é empréstimo, argumenta a defesa de Dilma. É empréstimo disfarçado, diz o pedido de impeachment, ainda mais porque seu volume explodiu nas administrações petistas, não se confundindo com pequenos desajustes de contas registrados –e logo pagos– em governos anteriores.

    É o resumo do que pude entender de todo esse embrulho. Algumas observações. É paradoxal, a meu ver, que um Congresso especializado em "pautas-bomba" e gastos malucos se apresente como defensor da austeridade nas contas públicas.

    Por outro lado, há uma explícita antipatia do governo em seguir o figurino do controle de gastos. Apoiou-se uma política de combate à crise econômica com mais gastos. A Lei de Responsabilidade Fiscal talvez seja "ortodoxa" demais, com efeito, no entendimento de Dilma.

    Dos vários motivos "populares" para o impeachment (corrupção, "comunismo", crise econômica), só este último pode ser visto como consequência das barbeiragens orçamentárias apontadas.

    Será que a crise seria menor sem pedaladas e tantos gastos? Grande parte dos economistas sustenta que sim. Mas Dilma não foi eleita, entre outras coisas, pela promessa de ser menos "austera" e "ortodoxa" do que seu rival? O paradoxo aumenta: será que ela não ficou mais impopular ainda depois de tentar seguir a cartilha de Joaquim Levy? Sem apoio do Congresso, aliás?

    O problema é que a Lei do Impeachment, de 1950, recebeu modificações que incluem o desrespeito à Lei de Responsabilidade Fiscal como motivo para o afastamento de um presidente. Na teoria, parece certo. Na prática, é um tiro de canhão para coibir procedimentos de alta complexidade.

    Última ironia. O parecer de Jovair Arantes argumenta, juridicamente, que se trata no momento de apenas admitir a possibilidade de um julgamento no Senado pelos supostos crimes da presidente. Se fosse o Supremo Tribunal Federal, tudo bem; mas para que a coisa chegue ao Senado, o tumulto político já estará instaurado. Num caso tão difícil e técnico, as eventuais infrações cometidas e o modo de julgá-las estão em descompasso.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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