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    Marcelo Coelho

    O império da ignorância

    13/04/2016 02h00

    Você já deve ter ouvido (talvez hoje mesmo) a frase de Marx, segundo a qual a história se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa.

    A própria frase já se repetiu tantas vezes que já não é mais cômica nem séria, nem irônica nem trágica, nem filosófica nem farsesca. Tornou-se, quem sabe, apenas uma péssima maneira de começar um artigo...

    No fundo, tudo se resume ao fato de que, num momento politicamente decisivo, inevitavelmente surgem comparações com outros eventos históricos importantes.

    Na crise atual, minha comparação preferida ainda é com 1964: anticomunismo, corrupção, bandeiras vermelhas nas mãos de funcionários públicos, bandeiras do Brasil em Copacabana.

    As diferenças, entretanto, são expressivas. Não há pronunciamentos militares. Entre outros motivos, porque os militares não têm vontade disso. Se tivessem, tremo ao imaginar quantas pessoas os aplaudiriam.

    Não é golpe, dizem os partidários do impeachment, porque não há ruptura da ordem jurídica. Certo. Não há risco de ditadura.

    Mas o lado adversário poderia lembrar, num exemplo que conhece bem, os acontecimentos de Moscou entre 1936 e 1938. Velhos bolcheviques, como Bukharin, Kamenev e Zinoviev, foram assassinados por Stálin.

    Não era assassinato, diziam os stalinistas: o processo seguiu rigorosamente os parâmetros legais.

    Comparações vão longe. Conversando com um amigo antipetista, ele criticou meus argumentos sobre o detalhismo das pedaladas.

    "Não importa", disse ele. "Só conseguiram prender Al Capone porque ele sonegava o Imposto de Renda."

    Com toda a loucura que estamos vivendo nestes dias, e com todos os riscos que isso envolve, tenho de registrar o puro prazer intelectual que sinto nessas discussões. Linda a charge de Jean Galvão nesta segunda-feira (11), mostrando um raio-X do cérebro dividido entre áreas vermelhas e azuis.

    Nem tão lindas, contudo, têm sido as cenas que se viram, um pouco por toda parte, durante estes últimos meses.

    Esqueçam-se as manifestações na internet, porque aí o fanatismo pode se manifestar sobre qualquer coisa, impeachment de Carlos Magno, pedaladas fiscais do Dalai Lama, decretos não-autorizados dos Mamonas Assassinas. Vamos ao mundo real.

    Estudantes pró-impeachment carregam uma faixa contra a "islamização do Brasil". O ministro Teori Zavascki, do STF, é retratado num pixuleco. Uma senhora ataca o cardeal-arcebispo de São Paulo, durante a missa, chamando-o de "comunista".

    Fatos isolados, certamente. O problema é que se repetem todo dia.

    Volto às comparações. Em 1923, um grupo minúsculo de radicais alemães hostilizava judeus. Casos pontuais, ora essa. Até que cada um desses fatos se revelou a ponta de incontáveis icebergs.

    Ora, o Brasil não é a Alemanha, não estamos perto de uma escalada totalitária. Posso até concordar, mas não gosto do que vejo.

    Talvez a radicalização seja um fenômeno temporário no Brasil: refletiria, sobretudo, a raiva e a impotência dos que sofrem com a crise e se indignam com a imensa e real corrupção que se verifica na esfera federal –com o PT, mas com Eduardo Cunha também.

    Como não respeitar esse sentimento? Como não repudiar o modo com que, repetidas vezes, se expressa?

    Seja o que venha a acontecer, o que mais me preocupa neste processo é o abismo novo que se abriu no país.

    Não me refiro ao abismo entre as classes –que se traduz, de forma imperfeita, como sempre, no debate. Nem me refiro ao clássico abismo entre "Estado e sociedade civil".

    Milhões de pessoas se mobilizam, autenticamente expressando o apoio (minoritário) ou a condenação (majoritária) ao governo Dilma. Na esfera institucional, contudo, julga-se a questão intrincada dos decretos e das pedaladas.

    Do ponto de vista político, tudo bem: a população opina sobre o governo e o PT. Do ponto de vista jurídico e econômico, isso é calamitoso.

    Uma questão eminentemente técnica, de complexidade e importância inegáveis, se vê decidida aos berros, aos xingamentos, com 99% dos participantes sem entender do que se trata.

    Pode não ser fascismo (não há organização, porretes ou uniformes), não é golpe militar, mas é algo que chega perto da barbárie. Detalhes constitucionais, com consequências gravíssimas, submetem-se ao império da ignorância.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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