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    Marcelo Coelho

    De volta à Guerra Fria

    04/05/2016 02h00

    Filmar um jogo de xadrez como se fosse uma final de luta livre não é coisa muito fácil, mas com boa dose de malabarismos de câmera o diretor Edward Zwick, de "O Dono do Jogo", consegue deixar o espectador arrepiado.

    Mesmo sem entender nada de xadrez, terminei o filme com certa frustração. Gostaria de ver mais cenas do célebre match de 1972, entre o americano Bobby Fischer e o russo Boris Spassky, que constitui o clímax de "O Dono do Jogo".

    Sem dúvida, um dos focos do filme é o progressivo estado de delírio em que o gênio americano do xadrez acaba mergulhando. Mas o interesse em tratar a biografia psicológica de Fischer não resiste à vontade de provocar emoções e torcidas na plateia; o resultado é que seu duelo com o campeão russo -simpaticamente vivido por Liev Schreiber, o frio diretor do "Boston Globe" em "Spotlight"- se torna o principal atrativo de "O Dono do Jogo".

    Em inglês, o filme tem um título mais sugestivo: "Pawn Sacrifice", "sacrifício do peão". Teoricamente, seria para dizer que Bobby Fischer era apenas uma peça no conflito entre Estados Unidos e União Soviética. Com muito exagero, pode-se entender que a loucura terminal do americano teria sido "provocada" pela tensão política daqueles tempos.

    Visto como um representante do individualismo americano, Bobby Fischer teria de enfrentar os treinadíssimos robôs do enxadrismo soviético, amplamente hegemônico durante o século 20.

    Acontece que o próprio filme não chega a tanto, e não é tão paranoico quanto seu personagem principal. O russo Boris Spassky não é um robô: desfruta, sem dúvida, dos privilégios reservados aos fiéis defensores do sistema comunista, mas é também um bacanão de óculos escuros, ouvindo rock na suíte do hotel -e sua frieza "nórdica" não o impede de alguns bons chiliques de vez em quando.

    "O Dono do Jogo" faz parte, assim, de uma espécie de revisão hollywoodiana do período da Guerra Fria.

    De enfiada, tivemos "Ponte dos Espiões", "Trumbo" e "Ave, César!", cada qual mostrando a rivalidade russo-americana de forma até que bastante glamorosa.

    "Trumbo", de Jay Roach, é o mais sério desses filmes, confrontando personagens reais -como o ator Edward G. Robinson (1893-1973)- com a pressão insuportável da patrulha anticomunista nos EUA da década de 1950.

    O ponto de vista de "Trumbo", naturalmente, é o das vítimas do macarthismo; simpatizantes de esquerda, e mesmo socialistas sem nenhuma sutileza, são perseguidos por um sistema ideológico em que não se admite o meio-termo. Ou você denuncia os comunistas, ou é visto como comunista também.

    Mesmo assim, o drama da Guerra Fria não se compara aos combates "a quente" entre americanos e terroristas muçulmanos, de que há tantos exemplos nos filmes atuais. O espião, o criptocomunista, o dedo-duro macarthista são tipos mais astuciosos do que o fanático ordinário.

    Os comunistas de "Ave, César!", decepcionante fantasia dos irmãos Coen, são pouco mais do que um grupo de patetas, pronto a ser vencido por um ou outro ator de Hollywood tão pateta quanto eles.

    Em "Ponte dos Espiões", o jogo é bem mais complexo: um corajoso advogado tem de negociar não só com russos, mas também com alemães orientais, para salvar a vida de dois bons rapazes americanos.

    Seja como for, o "inimigo" nestes filmes é sempre alguém com quem se pode conversar. A habilidade diplomática, a esperteza esportiva, o talento no xadrez fazem com que a Guerra Fria seja, afinal, um duelo entre seres humanos.

    O comunista, nesses filmes, pode ser mecânico, rígido, sem imaginação -e o anticomunista pode pecar por excesso de autonomia, por ser estabanado ou paranoico. Tudo deixa saudades, entretanto -ainda mais porque o Ocidente saiu ganhando no final.

    Como enfrentar, por outro lado, o Exército Islâmico? Por enquanto, não há diálogo, embuste, espionagem, movimentos de bispo, torre e cavalo capazes de decidir o conflito.

    Drones contra homens-bomba podem dar ocasião a complexos jogos de estratégia (penso no excelente "Decisão de Risco", de Gavin Hood), mas no geral não existem vitórias "morais" ou "políticas" possíveis: o desfecho será sempre uma explosão salvadora.

    Saudades da Guerra Fria, portanto? Não vou tão longe. Para cada grande estrategista do xadrez, há centenas de pessoas emburrecidas e vociferantes de cada lado da torcida.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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