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    Marcelo Coelho

    A neve cai

    01/06/2016 02h00

    O poeta John Berryman (1914-1972) tinha 11 anos quando, por nada, foi até a janela de seu quarto e viu alguém caminhando pelo jardim. Era seu pai, com um revólver na mão. Um tiro; o pai tinha se matado.

    Coisa pior aconteceu com outro escritor americano, Conrad Aiken (1889-1973). Ele também tinha 11 anos quando o pai, depois de um período de crises nervosas cada vez mais frequentes, pegou uma arma, matou a mulher e se suicidou.

    Aiken é o autor de um dos melhores contos que já li, intitulado "Silent Snow, Secret Snow" (título que eu traduziria simplesmente como "A Neve Cai").

    Na história, um menino acorda de manhã e percebe que não ouviu os passos do carteiro. Levanta-se, olha pela janela e percebe que a rua estava coberta de neve.

    Claro! A neve tinha abafado o som dos passos. Ele volta para a cama. Quando se levanta de novo, vê que não havia neve nenhuma, era um dia de verão.

    Aos poucos, ele começa a notar o som dos flocos caindo, enquanto o mundo em volta vai silenciando. Era um segredo, um tesouro a guardar consigo–como um selo raro, uma moeda antiga, uma conchinha especial da qual não quisesse se separar.

    O menino deixa de responder quando a mãe chama, não ouve mais as brigas em família, não presta mais atenção nas aulas, enquanto o som da neve continua, continua e cresce...

    O conto de Conrad Aiken aparece em antologias de terror, mas se concentra na pura experiência psicológica da alienação.

    Em "Ponto Zero", filme de José Pedro Goulart em cartaz no Frei Caneca e no Belas Artes, um garoto um pouco mais velho (Sandro Aliprandini) começa contando aquele conhecido, e sempre assustador, pesadelo espacial do astronauta que se desgruda da nave. O cabo se rompe, e lá vai ele girando para sempre no vazio...

    A ótima fotografia de Rodrigo Graciosa evita o modo óbvio de ilustrar essa narrativa. Em vez de um astronauta no céu, vemos o desespero de uma criança que cai na piscina e está a ponto de se afogar.

    A água será presença constante na história. Uma desastrosa aventura numa noite de chuva faz com que o personagem principal –quase o tempo todo silencioso– vá se afastando da realidade.

    Acorda no meio da noite, e sua cama está no meio da rua, com a chuva ensopando tudo. Mas será ele quem se perdeu do mundo cotidiano? O pai (Eucir de Souza, excelente no tipo do brasileiro bruto) já se afastou definitivamente no rumo da cafajestagem; a mãe (Patrícia Selonk, perfeito vitimismo orgulhoso) finge que nada está acontecendo.

    Nada mais difícil, sem dúvida, do que fazer filmes em torno do silêncio, da incapacidade que os personagens tenham para reagir ao que acontece.

    Não é esse, entretanto, um dos problemas de toda infância e adolescência? Reclamamos, claro, dos acessos de fúria dos mais jovens; depois, reclamamos quando eles se fecham no quarto e não conversam com a gente. Como poderiam, se já sabem que ouvirão os mesmos conselhos e críticas?

    A raiva e o silêncio nada mais são, e todo mundo sabe disso, do que expressões de impotência. Crianças e jovens são impotentes por definição, e também pela nossa cultura.

    Perfeitamente lógico, portanto, que queiram pegar as chaves do carro para um passeio, ou que sonhem em ter uma arma na mão. A outra resposta será entorpecer-se com a maconha ou o computador.

    Passividade também é o tema de outro filme brasileiro, "Prova de Coragem", dirigido por Roberto Gervitz com base no romance "Mãos de Cavalo", de Daniel Galera.

    A narrativa sofre um pouco no começo, com Armando Babaioff no ingrato papel de um personagem encolhido pelos próprios medos, apático diante das novidades que lhe apresenta a namorada.

    Os "flashbacks" vão aos poucos esclarecendo, e recontando, a adolescência do personagem –e sua incapacidade para reagir corajosamente às brutalidades de seu grupo.

    Só agora, perto dos 60 anos, vejo como errei ao presenciar, sem intervir, cenas de violência entre colegas de escola, ou de professores contra suas vítimas preferidas.

    É algo que custa a aprender: levantar a voz, com autoridade serena, e dizer "parem com isso", quando algo monstruoso acontece diante de nossos olhos. Ouvi um negro ser ofendido –e não reagi; não estava ainda na idade adulta. Por sorte, não presenciei nenhum estupro ou linchamento.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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