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    Marcelo Coelho

    Advogados diabólicos

    15/06/2016 02h00

    O caso de Eduardo Cunha e congêneres fez crescer, imagino, o interesse pela série "House of Cards" –com Kevin Spacey no papel de um político americano para lá de canalha.

    A novidade é que, todas as terças-feiras, às 22h, a TV Cultura exibe o programa da BBC de 1990 em que "House of Cards" se inspirou. São só quatro episódios, sucedidos por outra minissérie intitulada "To Play the King".

    A produção da BBC leva vantagem sobre a série americana, ao menos para quem se delicia com as formalidades britânicas. Em matéria de mordomo num alto cargo público, Michel Temer teria muito a aprender com Ian Richardson (1934-2007), o monstro refinado e pálido que é a estrela da série.

    Mas é provável que ninguém, nem nós, tenha ainda a aprender alguma coisa com esse tipo de enredo.

    O tempo, agora, parece ser mais de advogados do que de políticos, e há duas séries de TV ótimas para quem quiser se viciar no assunto.

    "Suits" nos tira um pouco da política para nos levar ao ambiente corporativo americano. Heranças, fusões de empresas e processos contra grandes poluidores do meio ambiente são a especialidade de Harvey Specter (Gabriel Macht), o principal advogado de um milionário escritório em Manhattan. Ali, a prioridade número 1 é escapar de qualquer decisão judicial. A arte está em produzir, forçar, imaginar e forjar acordos que terminem tornando mais ricos os que já são riquíssimos.

    Harvey Specter não se esforça para ser simpático –embora, na superfície, tenha muito de agradável e de sedutor. É lindão, gosta de jazz, não perde tempo na cama, tem sempre ótimas piadas –e nunca deixa de repetir que seu único interesse, seu único valor na vida, é a vantagem profissional e monetária que possa obter de cada caso.

    Seu aprendiz, Mike Ross, dispõe de talentos mágicos para memorizar documentos e para atuar à margem do sistema legal. Para começar, nem formado em direito ele é –e esse segredo garantirá bons momentos de tensão ao longo do seriado.

    Duas coisas chamam a atenção: primeiro, a extrema brutalidade que se esconde num meio profissional em que ninguém faz nada para ninguém se não obtiver alguma recompensa: nem um xerox ou um cafezinho aparecem de graça.

    Segundo, o fato de que, entre aqueles advogados, a ilegalidade faz parte da rotina. Roubo de provas, escutas clandestinas, traições conjugais, chantagem –tudo é permitido para quem sabe, na perfeição, o jeito de se safar de um processo.

    Para justificar o fascínio que a série provoca no espectador, muitos episódios terminam com soluções "do bem", mostrando que o egoísmo de Harvey Specter não haverá, necessariamente, de causar infelicidades ao mundo.

    As coisas me pareceram, por enquanto, menos atraentes em "How to Get Away with Murder", série voltada para o direito penal. Viola Davis é uma criminalista tirânica e horrorosa, a quem sérios dramas pessoais tratam, a meu ver ineficazmente, de amenizar. Tem uma equipe de alunos da faculdade para assessorá-la, e os pobres coitados se especializam em ilegalidades e grandes besteiras.

    Não nos interessa, explica a advogada em suas aulas, saber quem matou quem. Interessa-nos inocentar nosso cliente. Passos imprescindíveis: desacreditar testemunhas e arranjar novos suspeitos. Quanto mais confuso ficar o júri, melhor.

    Não, não é nada simpático.

    Fico pensando em tantos advogados brasileiros que, depois de anos defendendo presos políticos e lutando contra a ditadura, hoje dedicam seu talento aos mais consumados pulhas de Brasília.

    Invoca-se, com razão, o direito de todos à própria defesa e a um julgamento justo. Qualquer pessoa pode ser acusada sem motivos. Certo. Muitos advogados têm escrito sobre isso, ainda que se possa adivinhar a presença de algum mal-estar de consciência.

    Arrisco um outro argumento, que eles naturalmente não podem invocar. A presença de um advogado hábil, e mesmo diabólico, num caso escandalosamente simples não é só uma garantia para o acusado.

    É, também, uma garantia para a condenação. Se, depois de tudo, o réu termina preso, a sociedade pode ter razoável certeza de que ele era mesmo culpado. Não para livrar pessoas, mas para que sejam condenadas com justiça, é que o advogado se torna insubstituível. Não precisamos ficar com raiva quando eles vencem a parada.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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