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    Marcelo Coelho

    Jesse Owens mostrou que não é só preparo o que decide numa Olimpíada

    10/08/2016 02h00

    Mesmo sem a motivação proporcionada pela Olimpíada do Rio, vale a pena assistir a "Raça", filme de Stephen Hopkins que conta a história do atleta Jesse Owens, ganhador de quatro medalhas de ouro em Berlim, nos jogos de 1936.

    O feito de Jesse Owens é amplamente conhecido: o atleta negro americano quebrou recordes de corrida e salto em distância na festa promovida por Hitler e Goebbels, contestando na prática os delírios de superioridade racial dos nazistas.

    O que o filme traz de interessante, para quem não tem maiores conhecimentos sobre o episódio, é o conjunto de ambiguidades e contradições em que os próprios americanos estavam mergulhados naquela época. Afinal, mesmo sem o fanatismo genocida dos alemães, os Estados Unidos impunham toda sorte de discriminação aos afrodescendentes. O filme (cujo título em inglês, "Race", significa ao mesmo tempo "raça" e "corrida") acentua esse problema o tempo todo.

    Luli Penna/Editoria de Arte/Folhapress
    Ilustração Marcelo Coelho de 10.ago.2016

    J.C. Owens (o "Jesse" vem dessas iniciais) consegue entrar numa universidade: os alunos brancos não perdoam sua presença no lugar. Não aceitam que tome banho antes deles no vestiário.

    Não era um Estado sulista: Owens estava em Ohio. Ainda assim, os ônibus só permitiam que negros se sentassem nos bancos de trás. Mesmo consagrado, depois da Olimpíada, Owens tem de entrar pela porta dos fundos do hotel onde promovem um banquete em sua homenagem.

    Ironia das ironias, na vila olímpica dos nazistas ele viverá, pela primeira vez, a experiência de poder escolher livremente seu dormitório, sem ser conduzido a um espaço reservado para negros.

    Mais complicada é a situação de dois atletas americanos, escalados para a corrida de revezamento. Tinham origem judaica. O ministro da Propaganda nazista, Joseph Goebbels (numa memorável e sutil atuação de Barnaby Metschurat), convoca o chefe da delegação olímpica dos Estados Unidos, Avery Brundage (Jeremy Irons).

    Quando se é convidado para a casa de alguém, diz Goebbels, deve-se seguir os hábitos do anfitrião. Não se critica seu vinho ou seu conhaque; não se muda a ordem dos pratos à mesa. Os judeus não poderiam competir.

    Sob chantagem, o personagem de Jeremy Irons resolve ceder. Caberia a Owens substituir um dos judeus, numa prova para a qual não tinha nenhum treinamento específico.

    Não é a primeira vez que o peso de uma decisão moral recai sobre o atleta. Foram fortes as pressões da comunidade negra, e de parte da opinião pública americana em geral, para boicotar os jogos de Berlim.

    Sabendo como sou, provavelmente eu teria defendido o boicote. Sem dúvida, teria sido um erro; as vitórias de Owens foram para a história do século 20 e, no mínimo, tiveram o efeito de deixar Hitler bastante irritado –ele se retirou da tribuna para não ter de cumprimentar um negro.

    Nada é simples, todavia, nesse caso. Bem ou mal, a Alemanha saiu duplamente vitoriosa em 1936. Superou de longe os Estados Unidos no quadro de medalhas (89 a 56 no total) e ainda terá dito que fez "jogo limpo", sem inventar faltas que desclassificassem o recordista.

    Este, de todo modo, é o campo dos fatos, que "Raça" apresenta com exatidão. O que não dá para reproduzir neste artigo são as conversas e atitudes de Jesse Owens (Stephan James), impregnadas de habilidade quase felina.

    Em circunstâncias muito desfavoráveis, o atleta mantém seu extremo sangue-frio. Engole, para falar de um ponto de vista contemporâneo, diversas humilhações. Nunca parece curvar-se diante delas; por vezes, impõe sua vontade sem dizer uma única palavra.

    Desloca-se com agilidade incomparável não apenas na pista de corrida, mas sobre o fio de navalha do seu tempo histórico; e avançou muito, como se sabe, para a frente.

    "Raça" ficou pouquíssimo tempo em cartaz em São Paulo; por enquanto, só achei disponível a cópia pirata. Logo terão de lançá-lo em DVD.

    Outro filme sobre atletas, ainda melhor, é tcheco e se chama "Fair Play". Dirigido por Andrea Sedlácková em 2014, conta a história de uma corredora que se prepara para a Olimpíada de 1980, em Moscou. A moça se recusa a continuar um tratamento na base de hormônios; não conto o que as autoridades, e sua própria família, fazem diante dessa decisão.

    Como dizem em "Raça", a vitória olímpica depende muito pouco de um par de pernas. Inteligentes ou não, é com o cérebro (ou será a alma?) que os atletas conseguem a vitória.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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