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    Marcelo Coelho

    Minhas aulas de educação física nunca passaram de desperdício de tempo

    12/10/2016 02h00

    Muita gente reclamou, mas no meu caso uma corda de entusiasmo vibrou com a proposta de se extinguir a educação física do currículo colegial.

    Sim, todos precisam de atividade esportiva –talvez fosse o caso de torná-la obrigatória para sempre, num modelo coreano ou chinês, vinculando (boa ideia!) o recebimento de benefícios previdenciários a uma carteirinha de registro em academias públicas de ginástica.

    Farei uma sugestão melhor no final deste artigo. Lembro, enquanto isso, minha experiência com educação física na escola. Não terá sido diferente, imagino, da de muitas outras pessoas.

    Havia um campinho de futebol. O professor, cuja barriga era das mais eloquentes, chegava com uma bola marrom e descascada. Melhor do que se fosse nova: mais murcha, machucava menos quem tinha de ficar na barreira.

    Luli Pena/Editoria de Arte/Folhapress
    Ilustração de Luli Pena para coluna de Marcelo Coelho de 12 de outubro.

    Com a bola em campo, procedia-se à escolha do time. O jogo começava; o professor tinha um apito no pescoço, mas não tinha interesse em levá-lo aos lábios. É que se dedicava ao ritual de todas as tardes.

    Tinha comprado uma espécie de biscoito recoberto de chocolate, como uma espécie de Bis tamanho família, a Lajotinha da Kopenhagen. Desembrulhava-a com carinhos maternais; seu olhar se perdia para além da bola, para além das traves, para além do campo.

    Relegado ao papel de zagueiro intermitente e hipotético, eu observava seus transportes enquanto o time adversário varava nossas linhas defensivas. Ainda assim, eu me esforçava.

    Outros colegas, mais gordos e com óculos mais grossos do que eu, alheios ao jogo e a qualquer esperança de popularidade, reuniam-se à sombra da única árvore que havia na lateral do campo. O professor limpava com a mão o chocolate da boca. "Ei, vocês aí! Vamos jogar!" Era ignorado.

    Outros professores tinham atitude diferente. O do último ano do colegial fazia vista grossa: tínhamos de correr três voltas no campo antes do jogo; meus amigos "CDFs" simplesmente desapareciam atrás de uns arbustos na primeira curva da pista.

    Outro educador, mais metódico e militar, dividiu o seu ano letivo em quatro partes, nas quais aprenderíamos sucessivamente os rudimentos do vôlei, do basquete, do handebol e –surpresa!– do futebol. Usava o cordão do apito para bater nos renitentes.

    Não creio que tenha sido um estímulo para quem estava destinado, como eu, à vida sedentária.

    Um colega, anguloso e corredor, resolveu me dar lições de moral. Aos 60 anos, disse ele, você perceberá a importância de fazer exercício. "Está cheio de velhinho agora caminhando no parque para não morrer."

    Vi a foto desse colega outro dia no Facebook. Deve estar pesando uns 120 kg. Pareceu-me ostentar no rosto o típico sorriso, vitorioso e triste, do recém-safenado.

    Naturalmente, a falta de esportes me cobrou um preço. Crises de dor nas costas me levaram a quatro ortopedistas, além de vários chineses, japoneses e alemães especializados em técnicas de tortura.

    Por fim, uma fisioterapeuta foi aos poucos me ensinando o básico: como sentar, como levantar, como andar, como esticar o braço sem prender o ombro, como respirar sem entupir a barriga, como fazer abdominais sem congestionar o pescoço, como exercitar os braços sem deixar que os olhos saiam das órbitas.

    Entendo que isso seja a verdadeira educação física. O mundo dos esportes, ou, se quisermos, da recreação esportiva, parece-me ser exageradamente privilegiado quando se defende a disciplina nas modificações curriculares.

    Claro que meu caso é de uma especial inaptidão. Imagino quanta coisa, entretanto, poderia de fato ser ensinada para além do básico de uma prática esportiva nas escolas. Por que não incluir dança, defesa pessoal, ioga ou meditação no universo da educação física?

    O regime militar inventou de incluir a matéria no currículo do ensino superior. No habitual sistema de créditos, isso significava apenas um semestre de atividade obrigatória; para alguns, surgiu a ocasião de aprender a nadar. Para a maioria, nem isso.

    Resumindo: seria ótimo se a educação física nos ensinasse a usar o próprio corpo; os orientais são bons nisso. Prevalece, contudo, a ideia de que "o jovem precisa de esporte" –como se uma quadra, uma bola e um horário de recreio já não dessem conta do recado.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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