• Colunistas

    Wednesday, 08-May-2024 19:06:00 -03
    Marcelo Coelho

    'La La Land' produz uma ilusão atrás da outra

    24/01/2017 23h50

    A culpa é toda minha. Não gosto de musicais, e eu sabia perfeitamente que "La La Land" era um musical.

    Mas eu não imaginava que era tanto –que, desde os primeiros instantes, dezenas de pessoas presas num congestionamento saíssem dos seus carros e se pusessem a cantar e dançar em cima das capotas.

    O filme de Damien Chazelle continua nessa toada até o fim (com boas músicas, aliás), encadeando número depois de número, dança depois de dança, absurdo depois de absurdo. Certo, o que escrevo não chega a ser nem mesmo uma crítica do filme: é como reclamar de um faroeste porque há excesso de troca de tiros.

    Vejo uma diferença, contudo, entre os velhos musicais americanos e "La La Land". Filmes como "Cantando na Chuva" ou "O Mágico de Oz" inscreviam-se num modelo tradicional; podia-se gostar ou não deles, mas ninguém pensaria em questionar a ideia de fazer filmes assim.

    Sua existência estava como que "naturalizada"; eram exemplares a mais num gênero estabelecido. Já "La La Land" se apresenta como um ato autoral, quase como um manifesto; representa a opção de fazer um musical "típico" quando ninguém mais se dispunha a tanto.

    Parece-se, nesse sentido, com "O Artista", de Michel Hazanavicius, não por acaso vencedor do Oscar em 2011. Alguém se lembra? Era um filme mudo, em preto e branco –em pleno século 21. A ousadia do diretor estava nisso: apostar no anacronismo como se fosse uma estética revolucionária.

    Qual o sentido de "La La Land"? Não se propõe –como também não era o caso de "O Artista"– a revitalizar o gênero, abrindo caminho para novos musicais no futuro. Seria, então, uma "homenagem" a tempos mais felizes da indústria cinematográfica e da vida americana?

    Muitos filmes, nos Estados Unidos e na Europa, já se entregaram a nostalgias desse tipo. Novamente, acho que "La La Land" não se encaixa bem em tal modelo.

    Quando pretendem relembrar a antiga "magia" da Hollywood ou da Cinecittà, diretores como Federico Fellini ("A Entrevista", "O Xeique Branco") ou Woody Allen ("A Rosa Púrpura do Cairo", "Café Society") adotam uma atitude irônica, oblíqua, e ao mesmo tempo doce.

    O típico "filme de nostalgia" –mesmo se muito inferior aos que citei– procura atuar num duplo registro. Rende-se com prazer às belezas do passado, mas não se esquece de apontar o quanto há de ilusório nelas.

    Fellini era mestre, como se sabe, em denunciar o quanto havia de truque e mentira em suas cenas mais sedutoras (as ondas do Mediterrâneo à noite eram visivelmente feitas de celofane escuro, o mágico levitando no ar não escondia os andaimes que o sustentavam).

    Não é preciso ir tão longe em termos de pretensão estética. Uma paródia brasileira dos antigos filmes de terror ("O Segredo da Múmia", de Ivan Cardoso) tira seu encanto dessa mesma ambiguidade.

    Sabemos que nada é para valer, mas o diretor também sabe. Ele não quer nos enganar; compartilha conosco o prazer que existe em ser enganado também.

    Essa ambiguidade, que é uma forma de honestidade, a meu ver inexiste em "La La Land". Damien Chazelle não fala do prazer que teve, como seus espectadores, ao se deixar iludir pelo cinema do passado.

    Ele simplesmente quer produzir prazer iludindo seus espectadores, como os diretores de 70 ou 80 anos atrás, mas já sem ingenuidade, sem participar da ilusão.

    Fica de fora do jogo; produz uma ilusão atrás da outra, no mesmo estado de frieza com que um diretor de filmes de super-herói acumula efeitos especiais. Não fez um filme de nostalgia, mas sim de enganação.

    Assim como "Batman vs Superman" e congêneres pressupõem a infantilização do público, tratando todos os espectadores como se estivessem na faixa dos dez anos de idade, "La La Land" aposta na sua senilidade precoce.

    Estamos no mundo do Alzheimer voluntário –em que milhões de eleitores americanos tomam o topete de Trump como estandarte de uma volta triunfal aos tempos da brilhantina e tomam o republicano como a reencarnação de algum ídolo dos mingaus e bailes de debutante.

    A América será grande outra vez, promete o novo presidente. Os musicais estão de volta, repete "La La Land", sabendo não passar de fenômeno isolado. Pouco importa se acreditamos ou não; o filme já aderiu à era da pós-verdade.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024