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    Marcelo Coelho

    Jogo suicida e piadas de bebê morto remexem nos medos do adolescente

    12/04/2017 02h02

    Trato neste artigo de assuntos um bocado chocantes, e não quero deixar o leitor desprevenido.

    Tem cara de lenda urbana, e existe até um filme parecido a respeito, mas não acho impossível que coisas assim aconteçam de verdade. Trata-se de um jogo pela internet, que ganha adeptos entre adolescentes europeus, especialmente na Rússia.

    No "desafio da baleia azul", você se dispõe a cumprir cinquenta tarefas, das quais vai sendo informado aos poucos, sempre às 4h30 da manhã. As primeiras se resumem a ficar 24 horas sem dormir assistindo a filmes de terror, ou a passar o dia sem falar com ninguém.

    Furar-se com agulhas ou tatuar com faca o desenho de uma baleia no braço são os desafios que se seguem, devendo o interessado postar vídeos ou fotos que comprovem o feito.

    A última etapa do processo consiste em atirar-se do alto de um prédio. As baleias azuis, pelo que se diz, costumam "suicidar-se" na praia.

    Há dúvidas quanto ao número de reais vítimas desse jogo –mas é claro que sugestões letais, até piores do que essa, sempre podem encontrar alguma ressonância na alma humana. Em nome de causas coletivas, nem sempre razoáveis, milhões já se mataram. Certo, o desafio da internet não promete nada além da sensação de cumprir o próprio desafio.

    Mas mesmo uma coisa sem sentido pode revestir-se de valor e de importância para alguém.

    Luli Penna/Editoria de Arte/Folhapress
    Ilustração de Luli Penna para a coluna do Marcelo Coelho do dia 12 de abril

    Aqui entra a parte diabólica do desafio. Se tudo se resumisse a simplesmente ver quem se joga da janela, o absurdo se tornaria mais patente. Mas como o jogo está dividido em etapas, aliás várias dezenas delas, surgem elementos para que a coisa preencha de algum modo o vazio vital dos participantes. A mera sequência de tarefas estabelece um "sentido", ainda mais se ordenadas em dificuldade crescente.

    Do mesmo modo, um garrancho arbitrário significa pouca coisa quando isolado, ao passo que uma série de vários garranchos, ordenados em linhas, com repetições ou alguma aparência de progressão, transmite certamente a ideia de que alguma mensagem ali se esconde.

    Não seria esta uma regra geral? Dado o fato de que costumamos mesmo viver numa espécie de vazio, qualquer sequência, qualquer acúmulo, nos ajuda a enfrentar a progressão dos dias.

    Se não fosse necessário sempre aumentar a dose de uma droga para obter o mesmo efeito, a vida do dependente não se organizaria toda em torno desse objetivo. A droga seria capaz de lhe oferecer um prazer momentâneo, mas não se transformaria no "sentido" de sua existência.

    Mais! Sempre mais! Não é o que pensa o adepto da musculação, o investidor no mercado de capitais, o modesto participante de um programa de calouros?

    Depende, é claro, da inclinação de cada um; há mais fisiculturistas do que fanáticos por gamão, mais colecionadores de borboletas que de besouros. O importante, de qualquer modo, é que o "sentido" da vida muitas vezes toma a aparência de uma escadinha. O sistema do "um degrau por vez" nos ajuda a não ver o horizonte deserto à nossa frente.

    A coisa funciona mesmo que a escadinha vá para baixo, como é o caso do desafio suicida.

    O fato de que isso seja perceptível entre adolescentes me leva a falar de outro fenômeno.

    Tomei conhecimento de uma moda entre ginasianos, a respeito da qual há muito o que achar na internet. São as "piadas de bebê morto". Lá vai. "O que é mais divertido do que um bebê morto? Um bebê morto vestido de palhaço." "O que é melhor que um bebê morto numa lata de lixo? Um bebê morto em cinco latas de lixo."

    Por incrível que pareça, garotos de 12 ou 13 anos se divertem com isso. É da ordem das coisas que queiram explorar tudo que seja chocante, amedrontador ou reprovável: dos filmes trash às piadas racistas (há monstruosidades por aí), passando pelas próprias drogas, querem testar seus limites, engrossar uma pele talvez preservada demais.

    Há outra explicação, acho. Quando brincam com a ideia do bebê morto, estão nessa idade promovendo o funeral da própria infância.

    Talvez muita gente fascinada pelo suicídio não pense que está querendo matar todo o seu ser, todo o seu "si mesmo". Talvez queira matar algo, alguma coisa, que existe em seu interior.

    Ferir a criança, cortando o próprio braço; não atirar-se do alto de um prédio, mas jogar lá de cima aquilo que já se foi. Crescer, por vezes, pode ser um desafio radical demais.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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