• Colunistas

    Sunday, 05-May-2024 23:35:09 -03
    Marcelo Coelho

    Livro de Doris Lessing sobre gatos não se derrete com fofuras sobre o animal

    06/09/2017 02h00

    Luli Penna/Editoria de Arte/Folhapress

    O Facebook, como se sabe, é o site oficial dos gatinhos. Ninguém tira tantas fotos de cachorros; talvez se tenha mais a fazer com eles.

    Mas, como os gatos não saem de casa, e como os usuários de redes sociais tendem a fazer o mesmo, o resultado só pode ser esse: ninhadas e mais ninhadas de fofura.

    Não tenho maior interesse; mesmo se não fosse alérgico, seria incapaz de me derreter por um gato. Minha atitude, entretanto, está longe de ser hostil: admiro-os, respeito-os, acho-os em geral lindíssimos.

    É que eles não parecem fazer muita questão da gente –de modo que, devo confessar, de alguma forma obscura fico um pouco ofendido com o desprezo que me votam. Queria, humpf, mais carinho.

    A escritora Doris Lessing (1919-2013) parece não sofrer desse orgulho ferido. Certamente, amou muito as dezenas ou centenas de gatos de que cuidou durante toda a vida. Não era um amor cego, todavia; muito menos propenso a expansões, chiliques e cúti-cútis.

    As quase 200 páginas que dedica ao assunto, recém-traduzidas no Brasil ("Sobre Gatos", ed. Autêntica), podem ser lidas como um romance –dos mais desencantados e realistas. Há violência desde as primeiras páginas. Criada na África do Sul, Doris Lessing começa narrando o convívio sangrento entre falcões, gatos selvagens e gatos domésticos numa fazenda isolada.

    A família tinha seus gatos de estimação. Só que, conforme nasciam filhotes, não havia quem os adotasse naquele lugar isolado –e eles se tornavam selvagens. O remédio, porque não havia clínicas veterinárias nem se pensava em castrar os animais, era matar os gatinhos.

    Quem se encarregava disso era a mãe, que "fazia parte daquela parcela da humanidade que entende como as coisas funcionam". Era quem destruía as colônias de cupim, matava galinhas e resolvia a superpopulação de gatos.

    Mesmo assim, chegaram a 40, num dado momento. O envenenamento com clorofórmio revelou-se muito menos indolor do que se supunha. Seguiu-se um morticínio a tiros de revólver.

    Contando a experiência logo no primeiro capítulo, Doris Lessing adverte o leitor de que não está para gracinhas. Escreveu um livro tão pouco sentimental que nem sequer dá os nomes próprios das suas duas principais personagens.

    Ficamos sabendo apenas da gata cinzenta –que era lindíssima, mimada e charmosa como uma supermodelo–e da gata preta, que veio depois, meio sem-jeitona e conformada com seu papel subalterno na casa.

    Ao mesmo tempo em que descreve desapaixonadamente a psicologia não muito adorável dos gatos –diríamos melhor: a racionalidade incontestável dos gatos–, o livro remexe dolorosamente no tema da condição feminina.

    Com gracinhas e alongamentos, a gata cinzenta era uma sedutora nata –e não tinha nenhuma vocação para cuidar de filhotes. A outra gata, a preta, ligava menos para a opinião humana e realizou-se como mãe.

    Tudo normal até agora, mas, como disse, as memórias reais de "Sobre Gatos" têm a estrutura e a dramaticidade de um romance.

    No caso da gata cinzenta, tudo era dengo e charminho até o dia em que resolveram castrá-la. Doris Lessing cita a opinião de um verdureiro solteirão da vizinhança –só que a respeito de mães humanas: "Elas nunca param de ter filhos, mas não cuidam deles". Sobre as gatas, os veterinários concordam: "Melhor tirar tudo fora".

    Depois da operação, a gata cinzenta "perdeu, sem demora, seu corpo esguio, sua elegância: ficou mais bruta em todos os traços. Seus olhos sutilmente ficaram mais frouxos... A beldade tirânica da casa tinha desaparecido".

    Doris Lessing
    Sobre Gatos
    l
    Comprar

    Animal "sóbrio, obstinado e modesto", a gata preta, sua rival, passou também por maus bocados. Com uma doença grave, recusava-se a comer e principalmente a tomar líquidos. Tinha decidido morrer, explicaram os médicos.

    Doris Lessing resolve impedir que a natureza imponha sua vontade nesse caso. O pelo da gata "já estava como o pelo de um gato morto, cheio de pó e sujeira; seus olhos estavam grudentos, o pelo ao redor da boca estava sólido devido à glicose que eu tentava forçar para dentro dela".

    Não conto mais. Mas é como se no livro de Doris Lessing estivéssemos sempre às voltas com duas violências: a da natureza e a da civilização. Gatas e mulheres sabem do que se trata.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024