• Colunistas

    Sunday, 05-May-2024 06:39:17 -03
    Marcelo Coelho

    Para culinária atual, frutas em calda e catupiri são cafonices do passado

    18/10/2017 02h03

    Luli Penna/Folhapress

    Na segunda-feira passada, Gregorio Duvivier escreveu na Folha sobre o desaparecimento do coquetel de camarão –presença obrigatória nos jantares "de gala" até meados da década de setenta.

    Ele abriu um baú –ou melhor, um freezer– sem fundo, no qual reencontro, por exemplo, a "vaca preta", Coca-Cola com sorvete de chocolate, que teve seu sucesso antes que os milk-shakes (de Nutella, de amendoim, de panetone, de amaretto, do que você quiser) se comprovassem como mais versáteis no gênero "ice cream com mais alguma coisa".

    As bolinhas de queijo em festas de casamento vão se tornando inviáveis depois de tantas gozações nas comédias de "stand-up" –elas próprias, quem sabe, já seguindo no mesmo declínio que identificaram, anos e anos a fio, naquelas indefectíveis piadinhas sobre o Orkut.

    Um amigo implicava mais com as barquetes de aspargo –mas há também espaço para estranhar, como fez Duvivier, os palitinhos com cereja, presunto e provolone espetados no abacaxi.

    Periclitante, o camarão na moranga. Impossível de encontrar em São Paulo, o vatapá. Humilhado irreversivelmente, o arroz com passas.

    Imagino muitas exceções à regra, mas talvez haja um ou dois pontos em comum nessas comidas desaparecidas.

    Várias descendem do famoso peru à Califórnia. A ideia é sempre misturar frutas em calda com alguma coisa salgada –e isto, por volta de 1970, tinha a mesma extravagância, o mesmo luxo, o mesmo empenho no colorido e na psicodelia dos tecidos estampados de Emilio Pucci e das capas de LP dos Novos Baianos.

    Era, portanto, a tentativa de trazer o tropicalismo à mesa da classe alta. Rompia-se uma regra (os doces ficam para a sobremesa), mas sem perder jamais a ostentação.

    Em si mesmo, o tropicalismo tratava de recuperar uma caricatura do Brasil –aquela de Carmen Miranda– como que numa estratégia de autoimunidade, numa espécie de contestação "afirmativa".

    "Somos isso mesmo que vocês, civilizados, pensam –só que ainda piores". O peru à Califórnia, substituindo o tradicional peru à brasileira, fazia isso sem ironia. Tropicalistas, a rigor, eram os próprios californianos, não nós.

    As camisas coloridas dos turistas, a estética de Las Vegas –era isso, e não nós, o que Carmen imitava.

    Chegava a nossa vez, nos anos 1970, de viver o sonho americano –para escândalo da velha cozinha brasileira, ainda presa ao conservadorismo anterior ao golpe militar. Cozinha udenista, tradicional, muito pálida para os tempos do milagre econômico.

    A moda das comidas com frutas em calda passou –e passou também outra característica daqueles pratos antigos. O camarão na moranga, o camarão à Newburg, o antiquíssimo vatapá eram coisas intermediárias entre a sopa e o sólido. Serviam-se em colherões ou conchas.

    A própria barquete de aspargo, como os pratos com abuso de catupiri, investia no grosso, no cremoso, no difícil de ver, de separar, de saber exatamente o que é. O luxo estava na capacidade que a cozinheira tivesse de tornar artificial a matéria-prima e de fugir do cru.

    O gosto pelo separado, pelo fungível, pelo exato veio com a comida japonesa e com a medicina. Cabia confiar nas verduras mal cozidas e nos ingredientes naturais –o progresso nos transportes, na rede de abastecimento e nas técnicas para congelar a carne permitiu esse retorno ao "simples".

    O simples intensificou-se com a "nouvelle cuisine" e o minimalismo. Comer virou atividade quase pornográfica –devendo, por isso mesmo, receber a dignidade do interesse científico, da aventura intelectual.

    Temos a química, as espumas, as névoas, os granulados, as caligrafias, as referências, as citações, as notas de rodapé, as bibliografias em cada prato.

    Que, aliás, cresceu de tamanho –a não ser que você coma diretamente numa colherinha, numa caçarolinha que o garçom deixe a seu dispor.

    O sorvete virou sorbet, ou gelato. Sobra, mal e mal, o tiramisù.

    Qual o significado dessa moda, em contraste com a cafonice de 1970? Os ricos, os riquíssimos e os mais que riquíssimos seguem exigências intelectualíssimas da nova gastronomia.

    É que os tempos são de austeridade. Nada de desperdícios! Uma diferença de 0,3% na taxa de inflação, como de 10 graus centígrados na temperatura do forno, põe a perder o delicado equilíbrio em curso.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024