• Colunistas

    Saturday, 04-May-2024 20:20:39 -03
    Marcelo Coelho

    Público do cinema não consegue mais conter suas antipatias e torcidas

    08/11/2017 02h00

    Luli Penna/Folhapress

    Vi dois filmes –um bom e outro ruim– na semana passada. Eu estava em cinemas normais, de shopping. Talvez seja coincidência, mas notei que o comportamento das pessoas na plateia está mudando; quem sabe outras impressões confirmem o que estou dizendo.

    Claro que em "Tropa de Elite" a torcida era intensa –e quem se espanta com a onda Bolsonaro hoje em dia deve lembrar que o filme do Capitão Nascimento completa dez anos de sucesso.

    Mas é estranho ouvir manifestações de repúdio numa obra sobre as reações do diretor Jean-Luc Godard ao Maio de 1968 na França.

    Para variar, discordei das estrelinhas que a Folha concedeu ao filme de Michel Hazanavicius –só duas, das cinco possíveis. Sem ser um godardiano (e talvez por isso), adorei a caracterização precisa de Louis Garrel na pele do cultuado chefe da "nouvelle vague", em plena crise estético-político-conjugal.

    Godard é o rei das respostinhas implicantes e da impaciência espirituosa. Com as revoltas estudantis, intensifica suas convicções maoístas; renega os antigos filmes e quer instituir a gestão dos trabalhadores no próprio processo de filmagem.

    Os resultados são cômicos, porque ele nunca deixa de ser Godard e de considerar-se dono da razão. Ao mesmo tempo, mantém atitudes que hoje chamaríamos de patriarcais no relacionamento com a atriz Anna Wiazemsky (Stacey Martin).

    Aos 39, Godard parecia ser ao mesmo tempo um velho e uma criança mimada; cava a própria solidão, entra em brigas –algumas engraçadíssimas– com grandes amigos, e acaba tendo a característica dos grandes personagens de ficção: a de ser ao mesmo tempo coerente na psicologia e imprevisível nos atos.

    "Babaaaca!", gritou alguém no fundo da sala. Do outro lado, alguém emitia sons derrisórios, bem ao modo francês ("pfuah! Bâff!") a cada novo e absurdo radicalismo do protagonista.

    Seriam exemplares do direitismo galopante que toma conta do país? Se forem, devo admitir que não estou muito longe de concordar com eles. O extremismo de Godard naqueles anos, liderando o boicote ao Festival de Cannes e intencionalmente dando as costas para o público sem com isso atingir as massas proletárias, soa como puro vedetismo e desumanidade elitista.

    Em todo caso, não sou de dar gritos numa sala de cinema.

    Entro então para ver um filme bem ruinzinho, "Depois Daquela Montanha", com Kate Winslet sobrevivendo a um acidente de avião, a nevascas e a ataques de puma nos altos de uma cordilheira gelada.

    Conta com a ajuda de um médico (Idris Elba), que talvez por ser negro acrescente algum componente "risqué" para o público americano.

    Há também um cachorro, tão pouco inteligente quanto os dois protagonistas da aventura. Foi, de qualquer modo, quem mais atraiu as simpatias da plateia. Bastava ele aparecer em close que –de novo–o público se manifestava em voz alta. "Ahn...que fofo..." "Aahh..."

    Morrerá ele no fim? Eis a dúvida.

    Mas saí com outra pergunta. Se for verdade essa sem-cerimônia hoje em dia, qual a causa?

    Acho que tudo começa com o uso do celular. Muitos deixam o celular ligado durante a projeção. Pode ser que estejam conversando sobre qualquer assunto, sem se concentrar no filme. Aí, quando levantam a cabeça, esquecem-se de que estão num lugar público, e se manifestam em voz alta. Mais provavelmente, estão contando aos amigos do WhatsApp ou coisa parecida que, no momento, assistem ao filme tal, com os atores isso e aquilo.

    Como todo mundo passa o dia se comunicando com os demais, talvez a diferença entre um lugar público e o espaço privado já tenha desaparecido. Toda opinião se torna compartilhável em tempo real.

    Por outro lado, é verdade que com o Netflix e seus congêneres, sem contar o velho DVD, assistimos a cada vez mais filmes sem sair de casa. O DVD ainda presumia que você ficasse sentado na sala; no computador, você vê tudo com ele no colo.

    O resultado é que desapareceu –para retornar em novas bases a um conceito antigo– a "aura" do cinema, e você interpela os personagens do filme como se falasse com eles pelo Skype. Inversamente, estar numa sala de cinema é sair do casulo; as pessoas vão começar a gritar como se estivessem na avenida Paulista. Onde, aliás, ninguém grita mais. O cinema, caricaturando Godard, talvez tome o lugar das ruas.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024