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    Marcelo Coelho

    Misses mestiças

    29/11/2017 02h00

    Luli Penna/Folhapress

    Depois de maio de 1968, muitas coisas aparentemente ficaram com os dias contados. Ninguém apostava, por exemplo, na sobrevivência da gravata, dos bailes de debutante, do Carnaval de rua ou do casamento religioso com véu e grinalda.

    Dos concursos de misses, nem se fala. Numa época em que as feministas queimavam sutiãs, uma competição de beleza feminina só poderia estar, pensava-se, condenada a um vexaminoso esquecimento.

    Vou aprendendo que quase nada, por mais declinante, desaparece totalmente. Ainda há quem acredite que a terra seja plana, a Igreja Católica já conheceu tempos bem mais críticos e as misses ainda desfilam em busca do cetro e da coroa.

    Claro que não se reproduz o sucesso de antigamente. Mas neste ano havia motivos para acompanhar o "certame", como diziam os jornalistas nos tempos de Martha Rocha e Terezinha Morango (duas segundas colocadas, em 1954 e 1957).

    É que a piauiense Monalysa Alcântara tinha fortes chances de ganhar. No fim, ficou só entre as dez primeiras. Não foram suficientes sua "atitude", extrovertida e confiante no desfile, nem a beleza de sua mistura racial, que ostentava num resplendor de cabelos crespos.

    Ganhou uma branquela da África do Sul, que ninguém haverá de considerar feia, mas a meu ver ficava atrás das representantes da Colômbia e da Venezuela.

    Pois bem, o espírito "politicamente correto" nem sempre é tão simplista quanto parece.

    Comparando-se com o que ocorria há 40 anos, o concurso de misses hoje é uma festa da diversidade, com candidatas africanas arrasadoras e uma chinesa de cabelos curtíssimos, desafiando qualquer padrão que eu conhecesse até agora.

    Uma questão já se coloca: se o concurso ficou "politicamente correto" em termos de representação nacional e étnica, haverá sempre de ser "incorreto" na medida em que privilegia, afinal, as mais bonitas, e não há lugar para gordas, transexuais ou candidatas da terceira idade.

    Não defenderei que seja diferente. Se fôssemos exagerar, todo concurso de beleza teria de desaparecer –transformando-se, o que também pode ser feito, em concurso de conhecimentos gerais, de empreendedorismo social ou de pingue-pongue.

    Ocorre que, sem abandonar as exigências tradicionais da beleza física, o concurso de misses já se encarrega de incluir outros critérios também –e este é o segundo avanço do "politicamente correto" na competição.

    Com só 18 anos, Monalysa Alcântara tinha pouco a contar de si mesma, exceto o fato de pertencer a uma família grande e pobre do Brasil. Outras misses eram engenheiras, cientistas nucleares, ou dentistas ajudando crianças com lábio leporino nos confins da África.

    A miss Universo deste ano tinha credenciais ainda mais decisivas. Alguns anos atrás, foi sequestrada e safou-se do agressor, desferindo-lhe poderoso direto na laringe. Abriu então uma organização que ensina defesa pessoal às mulheres sul-africanas. Vemos negras e brancas, num filme, treinando caratê sob sua inspiração.

    Uma coisa dessas certamente pesou na decisão do júri –como a tentar que se aplique, na prática, o lema rotineiro das concorrentes, segundo a qual o que importa "não é a beleza exterior".

    Coisa fácil de dizer quando se é lindíssima. Mas, em todo caso, quando todas são lindíssimas, outros critérios acabam tendo importância também.

    Alguns teóricos da fase atual do capitalismo insistem na ideia de que o sistema do lucro, da apropriação privada e da mercadoria "colonizaram" todas as esferas da vida social. Tudo se transforma em objeto de consumo –até o rosto de Che Guevara.

    Não está errado, mas é provável que o inverso também aconteça. Valores sociais –como igualdade, justiça, defesa dos mais fracos– "colonizam", pouco a pouco, o mundo do capital.

    Leis contra o assédio sexual, contra o "bullying" no ambiente de trabalho, contra o abuso de poder econômico nas eleições, contra a destruição do meio ambiente vão se impondo como avanços civilizatórios na maioria dos países –não sem conflitos e contradições.

    Velhas instituições, como o concurso de misses, não desaparecem. Em parte, porque novos agentes, novos países, novas forças passam a entrar em cena. E também porque novos valores se misturam aos antigos. É a mestiçagem, mais uma vez, que sai ganhando.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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