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    Marcelo Coelho

    Perto dos 60, vou-me convencendo de que não existem mais 'dorzinhas'

    06/12/2017 02h00

    Luli Penna/Folhapress

    O sujeito tinha um compromisso marcado, mas telefona dizendo que não está muito bem, "um pouco de febre", alguma indisposição.

    Tudo certo, respondemos do outro lado. Marcamos outro dia. A coisa fica por aí mesmo, a não ser que...

    A não ser que você conheça muito bem aquela pessoa, e estranha, digamos, o tom da voz.

    "Febre? Há quanto tempo?"

    "Uns três dias", responde ele.

    "Não foi ver um médico?"

    "Ah, isso passa... não é nada..."

    Poucas pessoas insistem depois disso. Mas há quem resolva perguntar. "Febre de quanto?"

    "39 graus." Sinal amarelo fica ligado, mas ainda assim não será todo mundo que vai ficar em pânico.

    Respeita-se, ademais, a escolha do interlocutor –procurar um médico dá trabalho, outras dez vezes a preocupação se revelou exagerada, há outras coisas que fazer, e nenhum sintoma insuportável se manifesta. "Fica aí. Vou para sua casa." Quase coagido, o parente ou amigo concorda em ir ao pronto-atendimento.

    De lá, é levado às pressas para a sala de operação; se tivesse esperado uma hora a mais, seria a morte –por infecção generalizada, tumor, obstrução ou sabe-se lá o quê.

    Não há quem não conheça uma história parecida.

    Inchaço no rosto –foi uma coisa no dente–, a menos que doa muito, pode esperar. Você toma uma aspirina. O dentista estranha um pouco: além de inchado, o rosto apresenta um pouco de vermelhidão.

    Celulite facial! Nunca tinha ouvido falar disso. A infecção nas camadas profundas da pele pode ganhar o nome, já mais assustador, de "angina de Ludwig". E, antes que você possa pronunciar "trombose do seio cavernoso", você está morto.

    Parece que foi de coisa parecida que morreu o cantor Ricardo, ex-integrante do grupo Dominó, aos 40.

    O caso da febre de 39 graus foi acompanhado –disse depois o paciente– de uma "dorzinha" intestinal. Era dos mais sérios, e não tinha dado avisos suficientes para assustar quem não é hipocondríaco.

    Chegando perto dos 60 anos, vou-me convencendo que não existem mais "dorzinhas". "Ah, mas faço check-up todos os anos". Nem sempre é verdade. Você pensa que fez no ano passado, mas quando vê, está há mais de três sem se cuidar.

    Mas digamos que sim, que todo ano você fez os exames básicos. Onze meses são suficientes para que um tumor qualquer, não detectado no último check-up, já tenha se desenvolvido bastante.

    Ninguém poderia fazer exames de três em três meses. Mas imagino que quem tenha seus riscos de saúde aumentados, pelo cigarro por exemplo, devesse fazer exames com intervalo menor do que o de um ano.

    Doenças sem sintomas fortes, coisas de que nunca se ouve falar, como a tal celulite facial, não fazem parte do horizonte de preocupações de ninguém. Somos bombardeados diariamente pelo mesmo tipo de recomendações de saúde: faça exercício, evite (adoro esse "evite") doces e frituras, não fume, não beba em excesso (o "em excesso" é da mesma família do "evite"). Quando não é isso, sobram avisos para não deixar água parada em casa.

    Milhões de pessoas, imagino, deixam secas as vasilhas e bacias do jardim, sem nunca terem se preocupado em medir a pressão arterial.

    Na escola, sobrevive desde a minha infância um longo capítulo sobre tênias e lombrigas, ensinando as pessoas a não fazer suas necessidades no matinho. Era sem dúvida um item importante de saúde pública nos tempos em que a escola primária chegava antes do vaso sanitário às zonas rurais do país.

    Das verminoses, passamos a estudar o DNA, as drosófilas e as ervilhas, a mitocôndria e seu inesquecível plural (mas não é um coletivo?), o "condrioma". Daí, surgem os avisos sobre a dengue e seus correlatos, além das doenças sexualmente transmissíveis. Falta maior educação, eu acho, sobre os riscos que podem se esconder num simples enjoo, num sangramento de gengiva ou mudança de aspecto no xixi.

    Sem dúvida, a estatística favorece nossa despreocupação, e o mundo das epidemias exige que se generalizem informações como as que temos no nosso cotidiano. Nem o mais desenvolvido sistema de saúde privada haveria de aguentar todas as consultas e exames que, a rigor, deveríamos estar fazendo.

    De minha parte, deixei de acreditar que não estou tendo nada quando estou tendo alguma coisa. No mínimo, um bocado de medo.

    marcelo coelho

    É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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