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    Marcelo Gleiser

    A mágica receita cósmica

    07/04/2013 01h37

    A história da ciência é permeada de substâncias invisíveis e matérias obscuras.

    Em 1667, o alquimista e médico alemão Johann Joachim Becher, procurando entender a combustão, propôs que substâncias queimavam devido à liberação de "flogisto": uma substância sem flogisto não queimava. A hipótese foi questionada quando se demonstrou que certos metais ganhavam peso quando queimavam, algo difícil de conciliar com a perda de uma substância.

    Como solução, alguns especularam que o flogisto era mais leve do que o ar, enquanto outros sugeriram que tinha peso negativo. Esse tipo de atitude não é raro em ciência --quando uma ideia começa a falhar, medidas são tomadas para resgatá-la. Só com tempo e provas experimentais a ideia é abandonada ou modificada até fazer sentido.

    Apenas em 1783 o grande químico francês Antoine-Laurent Lavoisier demonstrou que a combustão requer a presença de oxigênio e que a massa dos reagentes permanece constante em toda reação química: "Em todas as operações da natureza nada é criado; uma quantidade idêntica de matéria existe antes e depois do experimento".

    Porém, confuso sobre a natureza do calor, Lavoisier propôs outra substância estranha, o "calórico". As coisas esfriam devido ao fluxo de calórico do quente ao frio. Para respeitar sua lei de conservação, o calórico não podia ter massa, sendo uma espécie de éter capaz de fluir.

    O calórico, errado mas útil, foi abandonado em meados do século 19, quando se mostrou que o calor é uma forma de movimento, uma agitação da matéria.

    Em pleno século 21, eis que vivemos num Universo pleno de substâncias obscuras. Observações astronômicas confirmam que a receita cósmica é um tanto estranha. Os números são revisados cada vez que um novo experimento publica resultados, como foi o caso do satélite europeu Planck há duas semanas.

    Mas a estranheza permanece. Os átomos dos quais você e eu somos feitos são a minoria absoluta, contribuindo apenas com 4,9% do total. Do resto, sabemos menos.

    Há duas contribuições principais: a matéria escura (26,8%) e a energia escura (68,5%). O adjetivo "escuro" vem do fato de não podermos "ver" tais substâncias. Sabemos que existem devido à sua ação sobre a matéria comum, os 4,9% que formam galáxias e estrelas.

    Isso porque ambas substâncias escuras atuam gravitacionalmente: a matéria escura, provavelmente formada de algum tipo de partícula, circunda as galáxias como um véu translúcido; a energia escura, bem etérea, banha o Cosmo por inteiro e é sentida apenas em escalas gigantescas, de centenas de milhões de anos-luz. É ela a responsável por causar a aceleração do Universo.

    Será que essas substâncias são nosso novo flogisto? Pouco provável. (Se bem que Lavoisier diria o mesmo do seu calórico.)

    A matéria escura deforma o espaço à sua volta, fazendo com que raios de luz sejam desviados, e esse desvio é detectado.

    Nesta semana, o primeiro sinal promissor de uma detecção foi feito por um instrumento da Estação Espacial Internacional. Ainda é cedo para confirmar, mas pode ser o primeiro raio de luz que iluminará nossa treva atual.

    marcelo gleiser

    Horizontes

    marcelo gleiser

    Professor de física, astronomia e história natural no Dartmouth College (EUA). Ganhou dois prêmios Jabuti; autor de 'A Simples Beleza do Inesperado'. Escreve aos domingos, semanalmente

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