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    Marcelo Gleiser

    Deus, Einstein e os dados

    20/04/2013 23h00

    Talvez o leitor tenha já ouvido falar da famosa frase de Einstein em carta ao físico Max Born, de 4 de dezembro de 1926, popularizada como "Deus não joga dados". Que dados e que Deus eram esses?

    Einstein referia-se à física quântica, que explica o comportamento dos átomos e das partículas subatômicas, como elétrons, prótons e fótons, as "partículas de luz".

    Os "dados" aqui aludem a probabilidades, ao fato de no mundo quântico ser impossível determinar onde um objeto vai estar. No máximo, podemos calcular a probabilidade de ele ser encontrado aqui ou ali, com esta ou aquela energia.

    Isso era bem diferente da física anterior, na qual ao saber a posição e velocidade de um objeto era possível, em princípio, determinar sua posição futura com precisão limitada só pelo instrumento de medida.

    Para Einstein, uma física não determinista não podia ser a última palavra na descrição da natureza.

    Outra versão, mais abrangente, deveria explicar as probabilidades e os paradoxos do mundo quântico. Aparentemente, Einstein estava equivocado. Deus joga dados sim.

    A versão completa da frase de Einstein é um pouco diferente: "A mecânica quântica é certamente impressionante. Mas uma voz interior me diz que não é ainda a coisa real. A teoria diz muito, mas não nos traz mais perto dos segredos do Velho. Eu, pelo menos, estou convencido de que Ele não joga com dados".

    O "Velho" aqui é uma figura metafórica representando não o Deus judaico-cristão, mas o espírito da natureza, a essência da realidade.

    Para Einstein, a função da ciência é desvendar essa estrutura.

    Por outro lado, ele tinha plena consciência de que nossas formulações científicas eram meras aproximações do que realmente ocorre: "Vejo a natureza como uma estrutura magnífica que podemos compreender apenas imperfeitamente e que deveria inspirar em qualquer pessoa com capacidade de reflexão um sentimento de humildade".

    O que incomodava Einstein era a interpretação da mecânica quântica, que diferia da sua visão de mundo. Em parte, foi ele mesmo o culpado, ao propor que a luz podia ser interpretada como onda (como todos já sabiam em 1905) ou partícula. Essa dualidade era inusitada.

    A coisa piorou quando a equação descrevendo elétrons em torno de núcleos atômicos, a "mecânica ondulatória" que Erwin Schrödinger propôs em 1926, descrevia algo imaterial. Em vez de uma onda normal, a equação descreve uma "função de onda" cuja interpretação, proposta por Born, era muito estranha: o quadrado (para os experts, valor absoluto) da função dava a probabilidade de medirmos a partícula em determinada posição ou com determinada energia.

    Ou seja, a equação fundamental da matéria não descrevia matéria! Nesse caso, a essência da natureza não era algo concreto, mas uma abstração matemática. A teoria funcionava, mas sua interpretação era um mistério. Esse era o problema que Einstein tinha com o Deus que joga dados. Até hoje, quando físicos pensam no assunto, não conseguem evitar certa ansiedade, mesmo com o sucesso da física quântica.

    marcelo gleiser

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    marcelo gleiser

    Professor de física, astronomia e história natural no Dartmouth College (EUA). Ganhou dois prêmios Jabuti; autor de 'A Simples Beleza do Inesperado'. Escreve aos domingos, semanalmente

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