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    Marcelo Gleiser

    Mente e matéria

    01/12/2013 02h00

    Escrevo esta coluna de Agra, Índia, onde participo de uma conferência sobre os fundamentos da física quântica e sua possível relação com a mente. Nada como misturar dois mistérios para criar um ainda maior.

    Pois a verdade é que, apesar de a física quântica ser, nas suas aplicações práticas --que incluem toda a tecnologia digital e nuclear-- extremamente bem-sucedida, sua interpretação permanece incerta, alvo de acirrado debate entre os físicos.

    Quanto ao funcionamento do cérebro, em particular sua relação com a mente e o consciente, continuamos conhecendo pouco, mesmo se, nos últimos anos, avanços nas técnicas de ressonância magnética vêm revolucionando os estudos de como o cérebro, ou partes dele, se comporta durante as mais diversas tarefas.

    Tudo começou quando Descartes, no século 17, propôs uma separação entre a matéria e a mente. Enquanto matéria tem extensão no espaço (preenchendo-o por completo, segundo Descartes), a mente existe meio que etereamente, sem ocupar espaço. Ela não é matéria mas, de alguma forma que mesmo Descartes não entendia, é capaz de influenciá-la.

    Descartes postulou também que a mente é mais essencial que a matéria, o seu famoso "Penso, logo existo". Esse dualismo da mente e matéria causa muita confusão, especialmente naqueles que nele se apegam para defender a existência de uma alma ou um espírito que independe da matéria.

    Por outro lado, a maioria absoluta dos cientistas e filósofos defende que apenas matéria existe; se o funcionamento do cérebro é um mistério, isso não se deve à existência de uma entidade não material mas à nossa dificuldade de compreender sua complexidade.

    Existem aqueles que defendem que entender o cérebro é reduzir seu comportamento às interações entre neurônios e grupos de neurônios a partir de cada sinapse, e aqueles, principalmente o grupo de filósofos defensores do "misterianismo", que argumentam que somos cognitivamente incapazes de compreender como funciona a mente e, em particular, o consciente --a experiência subjetiva que temos quando sentimos algo, seja o tom de uma cor ou a emoção do amor.

    A física quântica entra aqui devido ao comportamento bizarro de sistemas atômicos. A ideia é que esse comportamento tem algo a dizer sobre a mente, em particular a propriedade da superposição, em que elétrons ou outras partículas, antes de serem detectados, podem ocupar vários pontos do espaço ao mesmo tempo.

    A detecção do elétron seleciona um desses pontos, que podemos prever com certa probabilidade. O físico Roger Penrose e o anestesista Stuart Hameroff sugerem que pensamentos existem em superposição no inconsciente e que uma proteína chamada tubulina é a responsável pela seleção final de um deles, tornando-os conscientes.

    Para isso, usam outra propriedade estranha, o emaranhamento, onde duas entidades (e.g. elétrons) podem existir num estado onde suas identidades desaparecem e o par forma uma entidade só: o que ocorre em um influencia o outro, mesmo se separados por longas distâncias. Dessa forma, partes diferentes do cérebro podem se "comunicar" instantaneamente.

    Mesmo que a relação entre a física quântica e o cérebro permaneça um mistério, sem essas ideias pioneiras certamente não faríamos progresso.

    marcelo gleiser

    Horizontes

    marcelo gleiser

    Professor de física, astronomia e história natural no Dartmouth College (EUA). Ganhou dois prêmios Jabuti; autor de 'A Simples Beleza do Inesperado'. Escreve aos domingos, semanalmente

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