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    Marcelo Gleiser

    Platão, o filme Matrix e liberdade

    23/02/2014 01h40

    No seu diálogo "A República", o filósofo grego Platão oferece uma das primeiras meditações sobre a natureza da realidade e nossa limitada percepção dela, sua famosa Alegoria da Caverna.

    O tema é revisitado no filme de ficção científica Matrix, lançado em 1999 e dirigido pela dupla Lana e Andy Wachowski. Entre os 24 séculos separando as duas obras, presenciamos o nascimento da ciência moderna e, nas últimas décadas do século XX, dos computadores digitais extremamente rápidos.

    Com eles, e com as simulações cada vez mais realistas que podemos programar, a noção de realidade ganhou uma nova dimensão: somos capazes de criar alegorias virtuais que imitam ou satirizam o nosso mundo.

    E surge uma questão um tanto desconfortável, elaborada pelo filósofo da Universidade de Oxford, Nick Bostrom, em 2003: será que vivemos numa simulação? Se sim, quem seriam o Simuladores?

    Na sua Alegoria, Platão imaginou um grupo de escravos que nasceram já presos e acorrentados numa caverna. Os Acorrentados podiam apenas olhar para a parede da caverna à sua frente, vislumbrando as sombras e imagens que apareciam nela.

    Não sabiam que atrás deles, um grupo de Simuladores havia feito uma grande fogueira, e que as sombras que viam na parede nada mais eram do que projeções de objetos que os Simuladores erguiam contra o fogo. Para os Acorrentados, a realidade consistia nas projeções na parede da caverna. Sua percepção da realidade era profundamente limitada e falsa.

    Platão usou a Alegoria para argumentar que nossos sentidos criam uma ilusão falsa do real; para ele, a realidade só podia ser contemplada pela mente e seu poder de raciocínio puro, sem as distorções causadas pelos sentidos.

    Hoje, sabemos que Platão tinha razão, ao menos em parte: nossa percepção sensorial da realidade é mesmo limitada, mesmo quando ampliada com instrumentos científicos, como o microscópio e o telescópio. Apesar do incrível poder de nossos instrumentos, temos sempre uma visão limitada do mundo.

    Imagino que o leitor tenha já ouvido falar do videogame Os Sims. Como diz o nome, o jogo é uma simulação da realidade, onde os personagens são pessoas envolvidas nas tarefas do dia a dia: ir à escola, comer, ir ao médico, cuidar dos filhos e animais, namorar etc.

    Imagine uma versão superavançada do jogo, onde os personagens se sentem autônomos: apesar de controlados por Simuladores, se acham independentes, sendo responsáveis por suas ações. Nesse caso, esses personagens são essencialmente como os Acorrentados, tendo uma noção da realidade limitada e controlada por outros, sem que saibam disso.

    Bostrom sugeriu algo semelhante, mas agora os Acorrentados somos nós. Se simulações continuarem a ficar mais realistas, podemos imaginar que, num futuro distante, seríamos capazes de criar mundos virtuais essencialmente indistinguíveis do mundo real: a divisão entre realidade e fantasia desapareceria.

    Portanto, podemos imaginar que outras civilizações inteligentes estejam fazendo o mesmo; potencialmente, nós seríamos uma simulação controlada por Simuladores, sejam eles pós-humanos ou extraterrestres. Uma pergunta estranha então ocorre: se não podemos saber, importa sermos uma simulação? A liberdade só importa quando sabemos que não a temos?

    marcelo gleiser

    Horizontes

    marcelo gleiser

    Professor de física, astronomia e história natural no Dartmouth College (EUA). Ganhou dois prêmios Jabuti; autor de 'A Simples Beleza do Inesperado'. Escreve aos domingos, semanalmente

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