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    Marcelo Gleiser

    Faça sua vida importar

    09/03/2014 01h40

    Eis o que a novelista e filósofa americana Rebecca Newberger Goldstein escreve em seu novo livro "Platão no Google: Porque a Filosofia Não Vai Embora", que acaba de sair nos EUA: "para os gregos da antiguidade, um dos maiores terrores era perecer sob as ondas do oceano, desaparecendo sem qualquer traço."

    Esse terror vinha do "etos do extraordinário", o empenho em fazer com que sua vida tenha valor. "Se você não se empenha, ou se o seu empenho não dá em nada, então para que existir?...Temos que fazer as pessoas falarem de nós, o máximo possível e por muito tempo. Esse é o único tipo de imortalidade a que podemos aspirar."

    Esse não é o ponto de vista de Goldstein, mas ela deixa claro que é por esse tipo de atitude que estamos até hoje falando dos gregos e, em particular, de Platão. Ele é um excelente exemplo do etos do extraordinário, e seu legado filosófico resulta justamente de seu empenho na discussão racional do sentido da existência, o que, para ele, deve orientar uma vida bem vivida.

    É por isso que, em seu diálogo Apologia, dedicado ao julgamento de seu mentor Sócrates, Platão afirma que "uma vida não examinada não merece ser vivida". Existe algo de elitista nas ideias de Platão, como se pode ver. Para ele, se ser extraordinário é o caminho de apenas alguns, que assim seja. Uma vida gasta nas trivialidades do dia a dia é um desperdício.

    Deve-se dizer que, sendo um aristocrata bem rico, Platão não tinha que se preocupar com os necessidades essenciais que preenchem a vida de tanta gente, como ter que trabalhar para se sustentar, com pouco tempo sobrando para reflexões existenciais.

    Mas, como salienta Goldstein, a filosofia progrediu muito desde Platão, algo que, sem dúvida, ele apoiaria. Afinal, a essência da filosofia é examinar e reexaminar o que pensamos e fazemos. Sem essa postura de autocrítica, não há avanço. (Esta é, também, a essência da ciência, o que não deveria ser surpreendente: toda forma de conhecimento só avança se tiver plasticidade.)

    Goldstein, com seu talento de novelista, constrói um livro como nenhum outro, onde Platão reaparece na América do século XXI, participando de shows na TV, de debates com cientistas e filósofos, e visitando o prédio central da Google em Mountain View, na Califórnia, onde debate com um programador se é possível usar a internet para decidir questões éticas.

    Fiel ao seu protagonista, Goldstein usa o mesmo meio literário de Platão, diálogos em que ele é um dos personagens. Sempre que possível, usa textos originais, que entremeia de forma brilhante nas questões postas por seus interlocutores modernos.

    Isso mostra, entre outras coisas, que as perguntas formuladas por Platão, mais do que as respostas, continuam a fazer parte das nossas preocupações diárias.

    Respostas nunca são finais ou, se parecem ser, não devem interpretadas como sendo. Um dos pontos centrais do livro é mostrar que a filosofia avançou e muito nos últimos 2400 anos. Por quê, então, é tão difícil identificar esse progresso?

    Em ciência, é fácil acompanhar mudanças; em filosofia, nem tanto. Refletindo sobre Platão, o que permanece vivo e o que foi ultrapassado, Goldstein oferece um retrato desse progresso filosófico.

    Como ela mesmo diz, este faz parte dos nossos valores. "O que foi garantido através de argumentos complexos tornou-se parte do nosso ponto de vista. Não vemos o progresso porque enxergamos através dele".

    marcelo gleiser

    Horizontes

    marcelo gleiser

    Professor de física, astronomia e história natural no Dartmouth College (EUA). Ganhou dois prêmios Jabuti; autor de 'A Simples Beleza do Inesperado'. Escreve aos domingos, semanalmente

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