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    Marcelo Gleiser

    A questão da criação

    30/03/2014 01h40

    Agora que temos, pela primeira vez, alguma evidência experimental direta de que o Cosmos passou por uma fase de expansão ultrarrápida bem após sua origem (veja a coluna de 23/3 ), precisamos tentar entender o que isso significa.

    Antes, algumas palavras caucionárias: como todo resultado dramático, o obtido pelo time do telescópio Bicep2, precisa ser analisado com cuidado pela comunidade e confirmado por outros experimentos. Felizmente, devemos saber algo até o final do ano. Mas vamos supor que os resultados sejam válidos e explorar suas consequências.

    Essa fase inflacionária ocorreu um trilionésimo de trilionésimo de trilionésimo de segundo após o suposto "bang" que deu início ao tempo. Como falar de tempos tão ridiculamente pequenos? A verdade é que não temos uma teoria que descreva a física nessas condições. O que temos são extrapolações baseadas no que conhecemos hoje. A suposição é que possamos aplicar essencialmente a mesma física a energias que são um trilhão de vezes maiores do que as atingidas no LHC (Grande Colisor de Hádrons), no Cern.

    Não exatamente a mesma física, mas com atores parecidos: o protagonista da inflação é um campo escalar com propriedades semelhantes ao campo de Higgs. (O leitor deve lembrar, o campo associado à partícula conhecida, infelizmente, como "partícula de Deus".)

    Não sabemos se havia campos escalares na infância cósmica, mas é razoável supor que sim. Tal como o campo de Higgs, que pode ter energias diferentes, esse campo escalar (chamado de "inflaton") também pode ter o que chamamos de energia extra, longe do seu estado básico. (Feito uma bola que rola ladeira abaixo até atingir o ponto mais baixo.) Esse mecanismo é a alma do processo inflacionário. Claro, se não sabemos se existiam campos escalares, não sabemos se o mecanismo faz sentido. Mas usamos aqui a navalha de Ockham, o princípio da simplicidade; e, de fato, campos escalares oferecem o modo mais simples de obtermos a expansão cósmica desejada.

    Para que a inflação funcione, uma região suficientemente grande do Cosmo precisa estar preenchida com um "inflaton" dotado de energia extra. (Imagine uma banheira com água até certa altura e com temperatura alta.) Aqui temos que supor que essa condição inicial tenha sido satisfeita. Não sabemos como isso ocorreu, mas, sem ela, fica difícil entender como a inflação pôde começar.

    Para alguns físicos, essa condição inicial é arbitrária e precisa ser explicada. Uma explicação que acaba trazendo mais dores de cabeça é a de que o valor da energia do "inflaton" flutua devido a efeitos quânticos. Isso significa que regiões diferentes do espaço podem ter energias diferentes e, portanto, ter taxas de expansão diferentes; com isso, o universo vira um "multiverso", pleno de regiões inflando. O nosso Cosmo seria uma dessa regiões.

    Outros universos teriam, ao menos em princípio, propriedades físicas diferentes. O problema é que esses universos estão fora de nosso horizonte observacional; o multiverso não é uma hipótese científica testável. O que fazer? Abandoná-la? Ou será que precisamos mudar o modo de pensar sobre teorias físicas? Vamos ter que retornar a essa questão na semana que vem.

    marcelo gleiser

    Horizontes

    marcelo gleiser

    Professor de física, astronomia e história natural no Dartmouth College (EUA). Ganhou dois prêmios Jabuti; autor de 'A Simples Beleza do Inesperado'. Escreve aos domingos, semanalmente

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