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    Marcelo Gleiser

    A dança entre nossa curiosidade e nossa cegueira

    06/04/2014 02h00

    Nas últimas duas semanas, explorei aqui as consequências de uma nova observação cósmica, potencialmente revolucionária, realizada pela equipe do experimento BICEP2, um observatório no polo sul dedicado ao estudo da radiação cósmica de fundo. Se confirmada, a observação fornece prova direta de que nossas teorias descrevendo eventos que ocorreram a um trilionésimo de trilionésimo de trilionésimo de segundo estão, ao menos de forma geral, corretas.

    É óbvio que esse tipo de observação é muito diferente das obtidas num estudo realizado no laboratório, onde podemos controlar o sistema. Não podemos controlar o Universo, muito menos tão perto de sua origem. Por outro lado, observações de objetos distantes é o dia-a-dia da astronomia, e não existe nada de controverso nisso: não controlamos estrelas, mas podemos estudá-las metodicamente, recolhendo em nossos telescópios a luz que emitem.

    No entanto, existe uma diferença essencial entre observar estrelas ou galáxias –que são observações em geral diretas da radiação que emitem– e observar um sinal que foi impresso na radiação cósmica, como no caso do BICEP2. Essa radiação foi criada quando surgiram os primeiros átomos de hidrogênio, cerca de 400 mil anos após o "Bang" inicial. Os sinais que os detectores do BICEP2 coletaram foram impressos na radiação por eventos que ocorreram muito antes da radiação existir. Seria algo como obter assinatura de isótopos radioativos –que existem desde a origem da Terra– nas pirâmides do Egito, que foram construídas bem mais recentemente.

    Toda observação científica tem de ser interpretada cuidadosamente para evitar erros. É fácil, na empolgação da descoberta, se deixar levar pela emoção. Mas a natureza não se emociona. (Somos nós que nos emocionamos com ela.) Os cientistas do BICEP2 fizeram de tudo para evitar erros; e esperamos que, de fato, as observações prevaleçam. O cuidado, agora, tem que ser dos teóricos que buscam interpretar a relevância dos resultados, supondo que estejam corretos.

    Sabemos já que vários modelos teóricos foram eliminados pois contradizem as observações: principalmente, modelos do Universo primordial inspirados pela teoria de supercordas, incluindo os modelos de "pré Big Bang" do físico italiano Gabrielle Veneziano, e os modelos cíclicos conhecidos como "ekpiróticos", onde o cosmo ressurge da colisão de fatias do espaço chamadas "branas", como um deus mítico que cria e destrói o mundo ao bater palmas. Eliminar modelos com dados é exatamente o que uma ciência madura deve fazer.

    O curioso é que os dados não podem fazer mais do que isso; não podemos usá-los para selecionar o modelo correto, apenas para eliminar os incorretos. No máximo, podemos isolar as propriedades que um modelo correto deve ter. (Alguns filósofos argumentam que é sempre assim em ciência.) Chegamos, portanto, a uma situação singular. Tudo o que fazemos, como o francês Bernard de Fontenelle já sabia no século XVII, é tentar aliviar nossa curiosidade apesar da nossa cegueira.

    Mas no caso do universo primordial, a menos que algo de inusitado ocorra, nossa curiosidade jamais será saciada: teremos candidatos que visam explicar a realidade, sem podermos decidir qual deles é o correto. Talvez seja bom nos acostumarmos com isso desde já.

    marcelo gleiser

    Horizontes

    marcelo gleiser

    Professor de física, astronomia e história natural no Dartmouth College (EUA). Ganhou dois prêmios Jabuti; autor de 'A Simples Beleza do Inesperado'. Escreve aos domingos, semanalmente

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