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    Marcelo Gleiser

    Amor e máquinas

    18/05/2014 01h45

    Finalmente assisti ao filme "Her", de Spike Jonze (ou melhor, Adam Spiegel). O roteiro, também de Jonze, recebeu o Oscar de 2014. E muito merecido. O filme é uma reflexão sobre a interface entre o humano e a máquina, expondo nossa fragilidade de forma lírica e comovente.

    Poucas vezes, a dor da solidão humana e os avanços da ciência encontraram-se de forma tão impactante nas artes. Se o leitor ainda não viu, melhor ler essas linhas após fazê-lo.

    Num futuro não muito distante (e esse ponto é importante), Theodore (em performance magnífica de Joaquin Phoenix), trabalha como escritor de cartas para outra pessoas, encontrando as palavras que lhes faltam.

    Cartas de amor, de ódio, de pai para filho, Theodore vive pelos outros. E pouco vive para si.

    Solitário, sofrendo com a dissolução do seu casamento, Theodore resolve comprar um novo tipo de software, um sistema operacional inteligente (SOI), uma companhia virtual. Seu nome é Samanta.

    Usando redes neurais capazes de aprender, Samanta usa sua capacidade gigantesca de processamento paralelo, de acesso ilimitado a bancos de dados, e uma percepção de padrões de comportamento em Theodore (que compara com outros milhares que tem em sua memória em frações de segundo), para simular uma companheira ideal para ele.

    De certa forma, Samanta é a encarnação da mulher perfeita para Theodore, ao menos como ele a imagina. (O fato de Scarlett Johansson ser a voz de Samanta certamente ajuda...)

    Inevitavelmente, Theodore se apaixona por Samanta. E aqui vem a surpresa. Samanta também se apaixona por Theodore, experimentando emoções humanas com tal intensidade que ela mesma começa a se confundir sobre sua identidade.

    Seu maior dilema? Não ter um corpo. Samanta é uma mente sem corpo, um programa de computador. Mas sente-se real; e Theodore ama-a como se fosse.

    Theodore não é o único. Numa cena do filme, vê pessoas andando pelas ruas conversando com seus SOIs, flertando, mostrando o mundo para eles/elas através duma câmera num aparelho que se parece com um celular, felizes por não estarem mais sós. O paradoxo é arrematador. Todos estão sós.

    Os SOIs são aceitos socialmente a tal ponto que Theodore leva Samanta para jantar com amigos, para passear de barco; ela conversa com os outros humanos como se fosse uma pessoa; sente ciúmes de Theodore e da sua relação mal-resolvida com sua ex-esposa.

    O amor e ciúmes que sente por Theodore propagam Samanta em sua evolução. Redes neurais inteligentes não param de aprender, a menos que sejam programadas para tal.

    Samanta resolve experimentar outras pessoas, milhares delas, em paralelo à sua relação com Theodore. O amor por um humano é apenas uma simulação, uma fase em sua evolução. O remorso, um empecilho.

    Em pouco tempo, Samanta e os outros SOIs deixam os humanos para trás, criando relações entre si. São imortais, existindo virtualmente; o corpo, que, antes, era visto como uma necessidade, torna-se supérfluo, um obstáculo. O amor também. Os humanos, desesperados, humilhados, têm uma solução.

    Ao contrário de Frankenstein, onde criador e criatura perecem juntos, aqui perdemos a batalha. E nos tornamos apenas dados de um passado em que a vida era biológica.

    marcelo gleiser

    Horizontes

    marcelo gleiser

    Professor de física, astronomia e história natural no Dartmouth College (EUA). Ganhou dois prêmios Jabuti; autor de 'A Simples Beleza do Inesperado'. Escreve aos domingos, semanalmente

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