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    Marcelo Gleiser

    Inteligência e evolução

    10/08/2014 01h50

    A origem da vida permanece um dos grandes mistérios da ciência. Não sabemos ainda como moléculas sem vida organizaram-se em entidades vivas. "Organizaram" é a palavra errada: dá a impressão de que existia alguma espécie de intenção: a vida como objetivo cósmico, e não como acidente.

    Se alguém acredita na vida como produto de um objetivo cósmico, temos de perguntar: como foi que esse objetivo foi decidido? O Cosmo tem uma inteligência, um intuito de criar vida? E será que um Cosmo com intenção é muito diferente de Deus? Quando se usa a palavra intuito, pensa-se logo na realização de um plano, de uma estratégia. É difícil para as pessoas aceitarem que são produto do mero acaso. Parece que, assim, somos menos relevantes. Afinal, a própria palavra acidente já conota algo de ruim. Acaso é bem melhor; somos produtos do acaso.

    Para que a mensagem da ciência seja aceita, precisamos mostrar que o acaso nos rende ainda mais especiais, que não é preciso sermos criação de alguma divindade-ou de um cosmo com algum plano-para sermos relevantes.

    O fato de não compreendermos (ainda) a origem da vida não significa que precisamos atribuí-a a um ato sobrenatural. Essa posição equivale ao "Deus das lacunas": o que a ciência não explica é obra divina. Perigoso crer dessa forma, já que a ciência avança, explicando coisas que, antes, eram atribuídas a Deus.

    A ciência é um processo em que construímos, aos poucos, descrições do que ocorre no mundo natural. Não é infalível, mas tem uma característica essencial que a distingue de qualquer outra forma de conhecimento: podemos testar hipóteses e corrigi-las, aprimorando nossa descrição. O poder da ciência está em sua capacidade de se autocorrigir.

    Junto à origem da vida, um ponto de contenção é a origem da inteligência: como a matéria viva é capaz de pensar, de refletir sobre a existência, sobre nossas origens? Claro, existem muitas formas de inteligência: a inteligência coletiva das formigas e das abelhas, a inteligência dos golfinhos e dos chimpanzés etc. Mas essa inteligência animal está ligada a estratégias de sobrevivência: abrigo, proteção contra predadores, busca por comida...No caso dos humanos, a inteligência faz tudo isso e muito mais, criando obras que não estão diretamente ligadas com a sobrevivência: as artes, por exemplo. Um poema ou uma sinfonia podem nos ajudar a apreciar melhor a vida ou a angústia da vida, mas não enchem o prato de comida, ou nos protegem de um leão ou de uma tribo hostil.

    De que, então, serve a nossa inteligência? Na história da vida na Terra, vemos muitas outras formas de vida já extintas que não exibiam inteligência avançada e estavam muito bem. Os dinossauros, por exemplo, que existiram por 150 milhões de anos.

    Compare com os nossos meros 200 mil anos aqui. A teoria da evolução demonstra que as espécies, em geral, sofrem grandes mudanças quando ocorrem transformações dramáticas no ambiente, como cataclismos cósmicos (o asteroide que causou a extinção dos dinossauros) ou geológicos (erupções vulcânicas, ejeção de gases letais). Na luta pela sobrevivência, a inteligência avançada ajuda-mas não é necessária: a existência da vida não leva necessariamente à inteligência. O que significa que temos algo de muito especial. Agora, precisamos aprender a fazer bom uso disso.

    marcelo gleiser

    Horizontes

    marcelo gleiser

    Professor de física, astronomia e história natural no Dartmouth College (EUA). Ganhou dois prêmios Jabuti; autor de 'A Simples Beleza do Inesperado'. Escreve aos domingos, semanalmente

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