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    Marcelo Gleiser

    Viver a vida ou registrá-la nos celulares, eis a questão

    23/07/2017 02h00

    Emilio García
    Turistas tiram foto do quadro Mona Lisa, no Louvre.
    Turistas tiram foto do quadro Mona Lisa, no Louvre.

    De alguns anos para cá, uma transformação profunda vem ocorrendo em nossas vidas, mesmo que poucos reflitam sobre ela. Com a rápida evolução dos smartphones, ficou tão fácil capturar imagens da vida, que o que antes era complicado e oneroso –comprar um filme fotográfico, levar a câmera a tiracolo, revelar o filme na ótica, pegar as fotos reveladas– hoje é algo que todo mundo (ou quase) pode fazer. Tudo é devidamente registrado, do mais significativo ao mais trivial.

    Todo mundo é ou quer ser a estrela principal do grande filme da sua vida, e capturar os momentos julgados importantes é construir, aos poucos, essa narrativa pessoal. O filme da sua vida vive, virtualmente, nas redes sociais. No YouTube, vídeos viram "virais", atingindo milhares e até milhões de pessoas em horas. Cachorros salvando veadinhos que se afogam, aviões em pane, jogadores de videogame seguidos por adolescentes do mundo inteiro, cenas variadas da vida de indivíduos –cômicas e trágicas– são compartilhadas globalmente, com pessoas do Afeganistão à Zâmbia.

    Por um lado, isso faz sentido: nossas vidas são importantes, e queremos dividi-las, ser vistos, apreciados, tanto pelos amigos quanto por estranhos. Mas por outro, essa voracidade de capturar a vida tecnologicamente acaba por nos separar dela, criando um distanciamento do momento, da experiência visceral de estar vivo. Vivemos mais para mostrar aos outros nossas vidas do que para apreciá-la a cada momento.

    Essa transição começou antes dos celulares. Algo ocorreu entre o diário pessoal que trancávamos na gaveta e a câmera de vídeo portátil. Por exemplo, em junho de 2001 levei um grupo de ex-alunos da minha universidade num cruzeiro para observar um eclipse total do sol na África. No navio, encontrei vários "caçadores de eclipse", pessoas que viajam o mundo atrás de eclipses. Faz sentido, visto que poucos fenômenos naturais são tão espetaculares, capazes de despertar uma emoção tão profunda. (No meu livro "O Fim da Terra e do Céu" conto essa história em detalhe). Durante alguns minutos, tudo se transforma, o dia vira noite, o Sol coberto pelo disco da Lua, cercado pelos raios difusos da corona. Para vivenciar isso, temos que olhar para o céu com foco total. Mas o que vi, quando o eclipse ia começar, foi o convés do navio repleto de câmeras e tripés, as pessoas afoitas para fotografar e gravar o evento.

    As pessoas escolheram vivenciar esse momento tão raro e especial através de lentes e filtros, em vez de vivê-lo diretamente. Fiquei chocado, especialmente porque o navio tinha fotógrafos profissionais que iriam dar suas fotos para os passageiros. Mas as pessoas queriam as suas fotos e vídeos, mesmo sabendo que não seriam tão boas. Participei de dois outros eclipses e é sempre a mesma coisa. As pessoas optam por capturar a realidade através de uma máquina, diluindo a emoção do momento.

    Com os celulares e a mídia social, ficou infinitamente mais fácil arquivar e distribuir imagens. O alcance é potencialmente enorme, e o nível de gratificação mensurável (quantos "likes" uma foto ou vídeo ganha). Essencialmente, a vida moderna se transformou num evento social compartilhável.

    Claro que existe um lado positivo de tudo isso. Queremos e devemos celebrar momentos significativos e dividi-los com pessoas queridas e próximas. O problema começa quando a ânsia de registrar o momento ofusca a experiência de vivenciá-lo. Músicos e comediantes reclamam que não podem ver seu público, apenas um mar de iPhones e iPads. Algumas celebridades estão proibindo o uso de celulares nos seus casamentos, exigindo a presença concreta de seus convidados, e não a virtual.

    O Fim da Terra e do Céu (Edição de Bolso)
    Marcelo Gleiser
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    O mesmo ocorre com palestras e aulas que usam Powerpoint. Assim que a tela se ilumina, os olhares vão para ela, e o apresentador é uma voz solta no espaço, incapaz de criar uma relação direta com a audiência. Por isso, tendo a usar essas tecnologias minimamente hoje em dia.

    Sem querer ser muito nostálgico (mas sendo), nada suplanta o contato direto, olho no olho, o estar presente no momento, com a família ou amigos, ou mesmo sozinho. Os celulares são incríveis, claro. Mas não deveriam definir como vivemos nossas vidas –apenas complementá-las.

    marcelo gleiser

    Horizontes

    marcelo gleiser

    Professor de física, astronomia e história natural no Dartmouth College (EUA). Ganhou dois prêmios Jabuti; autor de 'A Simples Beleza do Inesperado'. Escreve aos domingos, semanalmente

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