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    Marcelo Gleiser

    A física de partículas é um exemplo para o mundo

    13/08/2017 02h00

    Fabrice Coffrini/AFP
    Cientista caminha em túnel do LHC do CERN, onde são feitas colisões de partículas para estudo da natureza da matéria e do universo
    Cientista caminha em túnel do LHC do Cern, onde são feitas colisões de partículas para estudo da natureza da matéria e do universo

    Entrei no refeitório de bandeja na mão, procurando o que comer. À minha volta, centenas de pessoas conversavam animadamente em dezenas de línguas, comentado suas ideias, fazendo perguntas, e traçando os próximos passos dos seus projetos.

    Almoço na ONU?

    Não, almoço no Cern, o laboratório europeu de física de partículas, casa do Grande Colisor de Hádrons (LHC), a gigantesca máquina onde foi descoberto o bóson de Higgs em 2012. Estou passando um mês aqui como cientista visitante, aprendendo com meus colegas e apresentando algumas de minhas pesquisas.

    Para a maioria das pessoas, a física de partículas é um assunto bem esotérico. Mas aqui no CERN, é uma opção de vida. O objetivo comum é desvendar alguns dos mistérios mais fundamentais da ciência, incluindo a composição material do universo. A ideia, que teve sua origem na Grécia Antiga, é que a matéria é feita de pedaços indestrutíveis, que não podem ser partidos em pedaços menores. A missão é encontra-los, entendendo também como interagem entre si.

    Para tal, não podemos usar microscópios –afinal, também são feitos de partículas. O método é tão simples quanto violento: colidir partículas a velocidades altíssimas e ver o que acontece. Primeiro, temos que extrair as partículas e alinhá-las, como cavalos de corrida, em uma espécie de pista. No LHC, prótons são extraídos de átomos de hidrogênio e injetados em um pequeno acelerador linear chamado Linac. Tendo carga elétrica positiva, os prótons respondem aos empurrões de campos elétricos, feito uma criança descendo um escorregador devido à gravidade.

    Quando a velocidade dos prótons é alta o suficiente, passam para um gigantesco túnel circular de 27 km de circunferência, onde são acelerados cada vez mais por campos elétricos (o escorregador) e guiados por campos magnéticos (as guias do escorregador). Os prótons são divididos em dois grupos, viajando ao longo do túnel em sentidos opostos, cada grupo no seu tubo, selado à alto vácuo. Quando atingem velocidades quase iguais à velocidade da luz (300.000 km/segundo –você pisca os olhos e a luz dá sete voltas e meia em torno da Terra), os grupos de prótons colidem de cabeça.

    O que acontece então é um dos fenômenos naturais mais espetaculares, a transmutação de energia em matéria.

    Segundo a famosa fórmula de Einstein, E=mc2, é possível converter energia em matéria e vice-versa. Aqui, a energia é a energia de movimento dos prótons. Quanto mais rápido se movem, maior sua energia. Esse é o desafio dos aceleradores: acelerar partículas até velocidades cada vez mais altas, de modo a atingir maiores energias. Isso explica as dimensões gigantescas do LHC, a maior máquina já construída: o longo túnel expõe os prótons a campos elétricos que aceleram os prótons constantemente, aumentando, assim, a energia das suas colisões.

    Quando os prótons colidem, partículas saem voando em todas as direções, como fogos de artifício. Bangue! O trabalho dos físicos, então, é analisar as trajetórias dessas partículas para decifrar quem são e quais as suas energias. Os cálculos têm que ser extremamente precisos. Se a natureza for generosa, novas partículas serão descobertas. É aqui que entram os detectores.

    Ao longo do túnel, que cruza a fronteira entre a França e a Suíça quatro vezes, encontram-se os quatro detectores que são o coração do LHC. Detectores são máquinas enormes que funcionam como uma espécie de supercâmera fotográfica, registrando as partículas que escapam do ponto de colisão. Cada detector é desenhado para responder à questões específicas.

    Os dois detectores principais do CERN, o Atlas, de 7.000 toneladas, e o CMS, de 14.000 toneladas, buscam pelo bóson de Higgs, pela possibilidade de dimensões extra do espaço, e por partículas de matéria escura. (Falaremos disso semana que vem.) Sua estrutura se assemelha à uma enorme cebola cilíndrica, cada camada desenhada para acompanhar a direção, o momento (relacionado à velocidade), e a energia das partículas criadas.

    São mais de 3.000 cientistas de 174 instituições e 38 países no Atlas, e 4.300 no CMS. Considerando os inúmeros seminários, conferências, e escolas de verão, entendemos porque o refeitório do Cern é tão cheio.

    Os outros dois detectores ao longo do túnel chamam-se Alice e LHCb. Alice estuda um possível estado da matéria conhecido como plasma de quarks e glúons, que deve ter existido frações de segundo após o Big Bang, antes de prótons e nêutrons existirem.

    Cada próton e nêutron é formado por três quarks. Os glúons (do inglês glue, cola) são as partículas que mantêm os quarks confinados dentro dos prótons e nêutrons. Perto da origem do universo, as pressões e temperatura eram tão altas que os prótons e nêutrons se dissolvem em uma sopa primordial de quarks e glúons, o objeto de estudo do Alice. Já o LHCb tenta responder porque existe mais matéria do que antimatéria no universo, um mistério que permanece em aberto. Sabemos que existe essa assimetria (mais detalhes em meu livro "Criação Imperfeita" ed. Record), mas não como foi causada.

    Criação Imperfeita
    Marcelo Gleiser
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    Os quatro detectores são verdadeiras joias tecnológicas. Termos chegado até aqui, após as primeiras conjecturas sobre a estrutura da matéria cerca de dois mil anos atrás, demonstra nossa perseverança e habilidade de trabalharmos juntos em prol de um objetivo comum.

    Em um mundo dividido por radicalismos culturais e desequilíbrios econômicos e sociais, o que acontece no Cern demonstra o que temos de melhor a oferecer como espécie. Nisso, a ciência de ponta realizada aqui é um exemplo para o planeta inteiro.

    marcelo gleiser

    Horizontes

    marcelo gleiser

    Professor de física, astronomia e história natural no Dartmouth College (EUA). Ganhou dois prêmios Jabuti; autor de 'A Simples Beleza do Inesperado'. Escreve aos domingos, semanalmente

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