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    Marcelo Gleiser

    O fim está próximo (de novo)

    17/09/2017 02h00

    Reprodução

    Segundo um grupo de literalistas bíblicos, temos apenas mais seis dias para viver. Essa é a interpretação deles de um versículo do Apocalipse de João, o último livro do "Novo Testamento", que prevê o fim dos tempos.

    Segundo João, o fim dos tempos seria anunciando por uma série de sinais, muitos deles cósmicos. Coisas estranhas que acontecem nos céus, como uma mensagem de Deus para os homens: preparem-se, pois o fim está próximo.

    Desta vez, o "sinal" é um alinhamento planetário nas constelações de Virgem e Leão que, no dia 23 de setembro, atinge uma espécie de auge. Estão lá Mercúrio, Vênus, Marte, Sol, Lua e Júpiter.

    No versículo 12 do Apocalipse, João relata a aparição de um "sinal grandioso no céu", a visão da mulher e do dragão

    1Uma Mulher vestida com o sol, tendo a lua sob os pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas; 2estava grávida e gritava, entre as dores do parto, atormentada para dar à luz. 3Apareceu então outro grande sinal no céu: um grande dragão, cor de fogo, com sete cabeças e dez chifres e sobre as cabeças sete diademas; 4sua cauda arrastava um terço das estrelas do céu, lançando-as para a terra. O dragão colocou-se diante da mulher que estava para dar à luz, a fim de lhe devorar o filho. 5Ela deu luz ao filho, que irá reger todas as nações com um cetro de ferro[...]

    A profecia e sua interpretação é o tema do documentário "O Sinal", do canal a cabo americano da AT&T, a empresa telefônica (vídeo do trailer mais abaixo).

    O "filho" sendo parido é associado a Júpiter deixando a constelação de Virgem no dia 23; o alinhamento planetário, e as estrelas mais brilhantes são a "coroa de doze estrelas". Já o Dragão de fogo é associado pelos literalistas com a aparição do Planeta X, um planeta que muitos (erroneamente) acreditam existir nos confins do Sistema Solar, a uma distância 90 vezes maior do que aquela entre o Sol e da Terra.

    Resumindo, os literalistas entrevistados no documentário afirmam com absoluta convicção que o apocalipse chega no dia 23 de setembro, conforme profetizado por João.

    Felizmente, o documentário não fica apenas no catastrofismo, apresentando também a versão científica da história. E é aí que ressurge o perene debate entre ciência e religião. No caso, a religião em uma forma extrema, tomando um livro sagrado como narrativa profética da realidade e não como texto simbólico.

    Os cientistas, todos conhecidos e de alto gabarito, fazem o que podem para mostrar o absurdo da coisa. Um deles, em particular, o astrônomo Konstantin Batagyn do Caltech, o instituto tecnológico da Califórnia, explica como a existência de um objeto celeste como o Planeta X teria induzido o colapso da órbita da Terra: com tal massa e atração gravitacional, teria causado instabilidade na órbita terrestre e não estaríamos aqui. No entanto, a Terra vem girando em torno do Sol há 4,5 bilhões de anos.

    O Planeta X não existe. Se existisse, e estivesse perto, seria visto.

    O que não significa que não possam existir outros objetos nos confins do sistema solar, como explica Batagyn. Mas a palavra chave aqui é "confins": dado que a força da gravidade cai com o quadrado da distância, objetos muito distantes têm influência desprezível. Por isso, aliás, que não caímos no centro da galáxia, devorados pelo buraco negro gigantesco que lá existe.

    O que mais me espanta nessa discussão e tantas outras idênticas que ocorreram no passado é a convicção dos literalistas. O que dirão no dia 24 quando nada de tão catastrófico acontecer, ao menos ao nível cósmico?

    Claro, tensões mundiais existem, e tanto Donald Trump quanto a Coréia do Norte ou algum outro líder ou grupo terrorista podem fazer coisas terríveis. Mas sempre haverá alguma tensão no mundo –e parece que também haverá um oportunista para interpretar isso como um prenúncio bíblico.

    Por que, em 2017, tantas pessoas ainda acreditam nesse tipo de profecia? Essa, para mim, é a pergunta chave.

    Em meu livro "O Fim da Terra e do Céu: O Apocalipse na Ciência e na Religião" explorei como muitas ideias apocalípticas de várias culturas fazem menção a eventos celestes, e como essas ideias transitaram da religião para a ciência. Eventos celestes estranhos ocorrem, e vêm sendo observados há milênios.

    Como, para os crentes, os céus são a morada dos deuses, atribuir uma aparição celeste estranha a uma mensagem divina é algo quase que natural. Historicamente, eclipses, cometas e chuvas de meteoros foram associados com mensagens negativas, onde a tragédia é iminente. Se os céus se comportam de forma estranha, os deuses não estão felizes. Se os deuses não estão felizes, nós pagaremos por isso, especialmente—para os cristãos– os pecadores.

    O medo de um fim apocalíptico expõe nossa fragilidade perante as forças da natureza. Sabemos que pouco podemos fazer quando a ordem natural das coisas é rompida. O que podemos é tentar, coletivamente, fazer uma diferença no que vemos à nossa volta, das injustiças sociais à falta de acesso a uma educação de bom nível.

    Usar o medo como agente de mudança, como faz a tradição apocalíptica, não funcionou no passado e certamente funciona menos ainda agora. Somos nós, e não os deuses, os agentes das mudanças que queremos ver no mundo.

    Veja trailer

    marcelo gleiser

    Horizontes

    marcelo gleiser

    Professor de física, astronomia e história natural no Dartmouth College (EUA). Ganhou dois prêmios Jabuti; autor de 'A Simples Beleza do Inesperado'. Escreve aos domingos, semanalmente

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