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    Marcelo Gleiser

    Da teoria à observação: Nobel de Física celebra ondas gravitacionais

    19/10/2017 15h11

    ESO/L. Calçada/M. Kornmesser
    Colisão de estrelas de nêutrons que foi observado por ondas gravitacionais na Terra
    Colisão de estrelas de nêutrons que foi observado por ondas gravitacionais na Terra

    Em 1915, Albert Einstein concluiu sua Teoria da Relatividade Geral, onde apresentava uma revisão radical da nossa compreensão da gravidade.

    Antes dele, a descrição dos fenômenos gravitacionais era baseada na teoria de Isaac Newton, de 1687. Segundo Newton, todos objetos com massa, das estrelas aos átomos, atraem-se mutuamente com uma força proporcional às suas massas e inversamente proporcional ao quadrado de sua distância: se a distância entre os objetos dobra, a atração cai por um fator de quatro.

    Newton sabia que sua teoria tinha uma falha fundamental, retratando a gravidade como uma misteriosa "ação à distância". De alguma forma, e ele não quis especular como, a força da gravidade agia instantaneamente através do espaço, como uma espécie de fantasma onipresente. Mesmo assim, a teoria descrevia tantos fenômenos tão bem que Newton preferia "não arriscar uma hipótese", como escreveu famosamente.

    Einstein não comprou essa história. Em 1905, na sua teoria da relatividade especial, postulou que nada pode viajar mais rápido do que a velocidade da luz de 300 mil quilômetros por segundo. Se algo acontecer com o Sol nesse momento, só saberemos daqui a 8,3 minutos, o tempo que a luz demora para viajar do Sol até a Terra.

    Como, então, a gravidade pode agir instantaneamente? Einstein sabia que a ação à distância de Newton era uma aproximação.

    Durante 10 anos, trabalhou duro para entender como suplantar a teoria de Newton. O resultado, a teoria da relatividade geral, é um triunfo intelectual raro na história da humanidade.

    A teoria de Einstein transformou nossa compreensão da natureza do espaço e do tempo. Para Newton, o espaço era como um palco inerte, onde as coisas aconteciam. Já o tempo, fluía solenemente adiante, como um rio.

    Com Einstein, o espaço e o tempo ganharam uma plasticidade, tornando-se deformáveis devido à presença de matéria e energia. Uma imagem comum, mesmo que em duas dimensões, é a de uma cama elástica. Se uma bola pesada é posta no meio, causa uma deformação na geometria, na sua forma. Algo semelhante ocorre com o espaço na presença de matéria; quanto maior a massa, mais dramática a deformação.

    A teoria da relatividade previa que o espaço é deformado pela matéria (e energia, graças a fórmula E = mc2). O tempo também é afetado, passando mais lentamente perto de uma concentração de matéria.

    Por mais estranha que possa ser, a teoria de Einstein funcionou espetacularmente; passou por todos os testes experimentais a que foi sujeita nos seus 102 anos de vida. Os aparelhos de GPS usam correções vindas da teoria para aumentar sua precisão. Teoria, aqui, não significa especulação, mas sim um corpo de ideias que explica algo profundo sobre a natureza.

    O teste que faltava era a ondulação do próprio espaço. Einstein entendeu que, se corpos com massa se movimentam, as deformações que causam na geometria do espaço também irão se movimentar, espalhando-se pelo espaço como as ondas que vemos quando jogamos uma pedra num lago. As particularidades das ondas dependem das particularidades do movimento das massas.

    Ondas gravitacionais são um pouco mais complicadas do que as ondas no lago, e requerem uma certa dose de assimetria: esferas ligeiramente deformadas ou, mais dramaticamente, dois corpos girando um em torno do outro –como a Terra em torno do Sol.

    No entanto, a gravidade é uma força tão fraca, que apenas algo de muito intenso pode criar um sinal que conseguimos detectar aqui. Idealmente, dois buracos negros girando em movimento espiralado, até colidirem. Foi exatamente essa dança e colisão de buracos negros que foi observada pela Observatório de Ondas Gravitacionais por Interferometria de Laser (ou Ligo).

    No final de 2015, os físicos trabalhando nesse experimento mal acreditaram no que viram: sinais idênticos ao que a teoria previa ser a órbita em espiral de dois buracos negros, com 36 e 29 massas solares, culminando na sua colisão final e formação de apenas um, após uma liberação espetacular de energia.

    A estrada que leva da previsão do fenômeno até a detecção foi muito longa. Só o Ligo, está em operação há mais de 25 anos. (Isso mostra a importância da estabilidade do financiamento da pesquisa, especialmente em experimentos complexos, algo que mencionei aqui na semana passada, em vista dos desastrosos cortes do governo brasileiro à pesquisa básica.)

    O prêmio Nobel de Física, anunciado no início do mês, celebra três cientistas que, cada qual ao seu modo, foram essenciais na descoberta.

    Rainer Weiss, professor emérito do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, recebeu metade do prêmio por ter desenvolvido o conceito, projeto e construção do Ligo. Kip Thorne, do Instituto de Tecnologia da Califórnia, que foi meu mentor durante um tempo e é uma pessoa de uma gentileza ímpar, fez previsões teóricas cruciais na forma e detecção das ondas gravitacionais, e em como distinguir os sinais do detector das inevitáveis interferências e ruídos. Barry Barrish, também do Instituto de Tecnologia da Califórnia, usou seu conhecimento amplo da física e sua aptidão como administrador para levar o experimento adiante, em face de obstáculos financeiros que quase cancelaram o projeto.

    A ondulação do espaço é muito sutil. Com sua estrutura de dois "braços" em forma de L, e usando lasers que viajam por 4 km ao longo dos seus dois braços, o Ligo é capaz de detectar deformações no espaço (essencialmente, a distância entre dois pontos) menores do que um milésimo do diâmetro de um núcleo atômico. (Leia isso de novo; é absolutamente incrível!)

    Para obter essa precisão espetacular, inúmeras fontes de interferência têm que ser eliminadas. Um caminhão passando perto, tremores no solo, vibrações térmicas etc.

    Quando os dois buracos negros se aproximam, girando furiosamente um em torno do outro, as perturbações no espaço intensificam. O Ligo detectou o par quando já giravam 30 vezes por segundo, captando apenas 20 milésimos de segundo de dados, até 250 giros por segundo e a colisão final que gerou um único buraco negro.

    Detalhe: isso ocorreu a uma distância de 1,3 bilhões de anos-luz, numa galáxia distante. Ou seja, essas ondas viajaram durante 1,3 bilhões de anos antes de chegar até a Terra, e distorcer os braços do detector Ligo por distâncias subatômicas.

    Se isso não lhe parece maravilhoso, você deve, como disse Einstein, "estar mais morto do que vivo, feito uma vela que se apagou".

    Tenho certeza que os 3 cientistas premiados concordam com Einstein. Engajar-se com o misterioso –com o que não sabemos do mundo natural– não é sempre fácil, e os resultados podem demorar muito tempo ou não vir. Mas o que pode haver de mais gratificante do que expandir os limites do conhecimento, abrindo novas janelas para a realidade?

    marcelo gleiser

    Horizontes

    marcelo gleiser

    Professor de física, astronomia e história natural no Dartmouth College (EUA). Ganhou dois prêmios Jabuti; autor de 'A Simples Beleza do Inesperado'. Escreve aos domingos, semanalmente

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