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    Marcelo Gleiser

    Quando o Estado naufraga a ciência é a âncora

    29/10/2017 02h00

    "Quando a tempestade irrompe em fúria e o Estado ameaça naufragar, só nos resta lançar a âncora de nossos estudos nas profundezas da eternidade".

    Assim escreveu o grande astrônomo alemão Johannes Kepler no início do século 17, quando a Europa passava por terríveis conflitos entre católicos e protestantes, que culminariam na devastadora Guerra dos Trinta Anos em (1618-1638). O Estado, no caso, o Sacro Império Romano-Germânico com sede em Praga, naufragava sob o comando caótico do imperador Rodolfo II, mentalmente instável, enquanto diferentes facções religiosas disputavam o poder. As instituições colapsavam, e ninguém confiava em ninguém.

    Na península itálica, a Igreja Católica intensificava a repressão ideológica na luta contra a Reforma Protestante. Em 1616, Galileu Galilei foi caucionado pelo cardeal Bellarmine, mestre das questões controversas do Colégio Romano, que o desafiou a provar de forma convincente que a Terra gira em torno do Sol ou calar-se por completo.

    Embora Kepler e Galileu temessem por suas vidas, não renunciaram à liberdade de refletir sobre os mecanismos do mundo natural. Ignorando a repressão, avançaram suas pesquisas, que culminaram, ainda no mesmo século, no abandono das ideias de Aristóteles, que dominaram o pensamento ocidental e eclesiástico por 18 séculos. A coragem intelectual deles abriu as portas para o mundo moderno.

    A repressão religiosa e as guerras passam, mas o conhecimento científico permanece.

    Não vivemos no século 17, mas seria inocente –especialmente dada a atitude do governo atual– achar que a ciência e sua credibilidade não estão sendo atacadas. Vemos isso todos os dias, quando muitos políticos e amadores criticam, sem a menor autoridade ou conhecimento, as conclusões de milhares de cientistas em assuntos que vão da validade das vacinas ao aquecimento global.

    É paradoxal que isto esteja ocorrendo em pleno século 21, quando dependemos tão diretamente das tecnologias resultantes da aplicação da pesquisa em ciência básica. Este vídeo extremamente importante, produzido por cientistas brasileiros, deveria ser visto por todos.

    Sem a ciência brasileira, não existiria a tecnologia que tornou o Brasil numa grande potência agropecuária internacional, fornecendo alimentação para centenas de milhões de pessoas. Sem a ciência brasileira, não existiriam carros movidos a álcool ou gás natural, com flexibilidade no uso do combustível. Sem a ciência brasileira, não temos liderança na exploração de águas profundas, ou no controle e erradicação de várias doenças tropicais. Como então, me pergunto, nos encontramos nessa situação absurda de termos um governo que parece ter declarado guerra ao conhecimento?

    Essa é uma questão crucial, que pertence a todos nós, e não só aos cientistas. Existe um abismo imenso entre o mundo da ciência e o mundo da política. A maioria dos líderes políticos pouco sabe sobre ciência (com louváveis exceções, claro) e não parece ter o menor interesse no assunto.

    Após 26 anos ensinando ciência numa universidade, vejo uma divisão clara entre os alunos que gostam ou não de matemática e de ciências. Existem, como disse acima, exceções, mas tirando os alunos interessados em legislação de patentes ou ambiental, a maioria que decide cursar advocacia e seguir carreira política não é composta dos interessados nas disciplinas CTEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia, Matemática). Seria interessante ter um estudo quantitativo para saber como esse déficit afeta posições políticas relacionadas com a ciência e sua importância, especialmente quando o governo atua sem uma consultoria científica.

    O resultado é que, sob a pressão de grupos de interesse diversos, questões de natureza científica viram assuntos "abertos para o debate público": pessoas que pouco sabem do uso da metodologia científica utilizada para se chegar a uma certa conclusão se acham no direto de opinar e criticar, baseados em... baseados em quê, exatamente? Informações incompletas e propaganda de grupos de interesse que manipulam a opinião pública para servir a seus propósitos, em geral para garantir os ganhos de seus investidores.

    Com isso, a ciência e seus resultados –obtidos após anos de trabalho meticuloso realizado por profissionais treinados– se transformam em mera opinião, como se fossem futebol, moda ou filmes. É como se o cirurgião virasse advogado e o juiz virasse engenheiro.

    As pessoas tendem a confundir o processo de como a ciência é feita –se autocorrigindo, seus resultados sempre melhorando– com imprecisão e incerteza. Trata-se de um erro grave. A ciência avança em estágios, mas avança, e vemos os resultados disso por toda a parte. Basta comparar a qualidade das TVs ou dos computadores de dez anos atrás com os de hoje.

    Celulares? GPSs? TVs de ultra-definição? Bluetooth? De onde vieram essas invenções e tecnologias? Quem são esses inventores? Certamente, não os políticos que querem cortar o orçamento da ciência. Eles apenas usam os frutos da pesquisa, achando que surgem do nada, como que por mágica.

    Kepler viu o Estado colapsar a sua volta, e pouco pôde fazer a respeito. Não podia pegar uma espada para lutar, pois não era um herói dos campos de batalha e, sim, do mundo das ideias. O que ele e Galileu fizeram foi olhar para os céus, buscando por verdades eternas, além da fragilidade e confusão dos homens. O que eles fizeram permanece vivo, enquanto as guerras e repressões ideológicas ficaram no passado.

    Penso nas crianças e jovens espalhados pelo Brasil, nos potenciais Galileus e Keplers, que não terão a oportunidade de expandir seus horizontes, que viverão num país onde a carreira científica será cada vez mais vista como um tabu, como uma opção profissional inviável. Que triste ver nosso país tomar esse rumo, determinado por pessoas que parecem não entender as consequências desastrosas de suas ações.

    marcelo gleiser

    Horizontes

    marcelo gleiser

    Professor de física, astronomia e história natural no Dartmouth College (EUA). Ganhou dois prêmios Jabuti; autor de 'A Simples Beleza do Inesperado'. Escreve aos domingos, semanalmente

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