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    Marcelo Leite

    Macacos nos mordam

    03/11/2013 01h45

    Qualquer pessoa que tenha encarado macacos --de saguis a gorilas-- terá sentido algum constrangimento, ainda que passageiro. Seu olhar tem algo de incomodamente humano, do qual nos desviamos tão rápido quanto possível, confinando-os na condição segura de animais.

    Esses primatas, de seu lado, são muito ruins em escamotear a própria humanidade --embrionária, por certo, mas inquestionável. Por isso os evitamos, como quem finge não reconhecer um parente pobre, ou infeliz, na outra calçada.

    Deve ser essa a motivação por trás do resultado mais intrigante da pesquisa Datafolha sobre o uso de animais em pesquisa: que os símios tenham sido relegados a um humilhante segundo lugar na escala de repulsa, com meros 59% dos paulistanos a rejeitar seu uso em pesquisa, contra 66% no caso dos cães (azar dos ratos, com 29% de fãs) .

    Hélio Schwartsman já assinalou, com a firmeza habitual, que não há uma filosofia coerente por trás das convicções dos militantes que invadiram o Instituto Royal, em São Roque (SP), e da maioria paulistana que os apoia. Mesmo admitindo que os entrevistados pelo Datafolha tenham respondido mais com o coração do que com o cérebro, persiste a questão: por que deixar os coitados dos macacos atrás dos cães?

    Primatas são a minoria entre cobaias, menos de 1%, mas nem por isso o número é desprezível. Estima-se que, só nos EUA, entre 70 mil e 75 mil primatas não humanos vivam em cativeiro para servir à ciência, como veículos de pesquisas ou reprodutores. A maioria (93%) são cinomolgos (Macaca fascicularis), da Indonésia, mas sobra também para resos, chimpanzés e saguis.

    No Brasil é mais difícil localizar esses dados. Quem for até a página do Concea (Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal) no portal do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação em busca de informações sobre o número de animais usados topará com o paternalismo e o autoritarismo usuais no país: "Estes dados poderão ser disponibilizados desde que o interessado apresente justificativa plausível para sua utilização".

    É a política baseada no princípio segundo o qual o que os olhos não veem, o coração não sente. Combatê-la é um dos raros méritos do "dog bloc" que resgata animais de raça no escuro, com a complacência de policiais e políticos tucanos.

    Esses radicais de condomínio são movidos pelo próprio narcisismo. Idolatram os cães, e em menor número os gatos, porque eles são o único elo --idealizado e pervertido-- que mantêm com o mundo natural. Animais domesticados, no pior sentido: despidos de toda animalidade que não seja decorativa e customizada para comprazer aos humanos.

    A seleção artificial promovida ao longo dos séculos por criadores privilegiou características como a neotenia, ou seja, a retenção, na fase adulta, de traços e comportamentos do animal jovem.

    Nossos cães são mansos, fiéis e sempre dispostos a nos bajular, em vez de morder, porque assim os desejamos: seres encarcerados na infância, dependente e indolente, em que gostaríamos de nos refugiar.

    Mais que sentimentos, é por sentimentalismo que repudiamos experimentos com cães. De um ponto de vista mais próximo dos macacos, tão imprescindíveis quanto cães para pesquisas vitais aos humanos, encararíamos talvez essa questão com algo mais de responsabilidade.

    marcelo leite

    É repórter especial da Folha,
    autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp).
    Escreve aos domingos
    e às segundas.

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