"Homo homini lupus" (homem, lobo do homem), célebre dito de Plauto (254 a.C.-184 a.C.) reciclado por Thomas Hobbes (1588-1679) para falar da guerra de todos contra todos, pode ganhar uma variante canina. Agora dá para afirmar também, e de maneira mais amigável, que o homem é o lobo do cão.
Melhor dizendo: há fortes indicações de que homens ocuparam o lugar simbólico de outros lobos quando este animal foi domesticado, mais de 15 mil anos atrás, e deu origem aos cachorros. Se naquele tempo os ancestrais dos cães prestavam muita atenção em seus semelhantes, essa habilidade parece ter sido cooptada para facilitar a comunicação entre humanos e caninos.
Pelo menos é isso o que sugere um estudo de Friederike Range e Zsófia Virányi, do Instituto de Pesquisa Messerli da Universidade de Viena. O trabalho foi publicado no periódico "PLOS One" no dia 29.
A alemã Range e a húngara Virányi queriam saber se cães e lobos são igualmente capazes de imitar o comportamento de seus colegas. Descobriram que não, para desdouro dos cães e tristeza de seus admiradores (como este colunista).
Para chegar à conclusão, montaram um laborioso experimento. Primeiro, foi preciso criar duas matilhas (uma de lobos, outra de vira-latas) em condições iguais, desde as primeiras semanas de vida, em contato constante com tratadores humanos, inclusive durante o sono.
Quando os animais alcançaram a idade de seis meses, 14 lobos e 15 cães foram submetidos à mesma tarefa: mover uma alavanca, com a pata ou com a boca, para abrir a tampa de uma caixa e pegar uma guloseima, mas só depois de observar um outro cão treinado para isso realizar a mesma operação. Quatro vídeos detalhando o procedimento podem ser vistos aqui (as imagens estão no final do artigo).
Todos os lobos testados conseguiram abrir a caixa pelo menos uma vez, mas só depois de presenciar a ação praticada por outro animal. No grupo de controle, cujos integrantes tinham de se virar sozinhos para descobrir como abrir a caixa, houve fracasso generalizado.
Cachorros deixados à própria sorte diante da caixa também ficavam em volta, cheirando, sem conseguir levantar a tampa. Até aí houve empate. Lobos e cães são igualmente ruins na solução espontânea de problemas, sem a dica de colegas.
Foi na hora de imitar o animal treinado que os cachorros se deram mal. Só 4 dos 15 cães conseguiram abrir a caixa e abocanhar o petisco. Placar final: 14 a 4 para os lobos.
A explicação para isso, na interpretação das autoras, está na maior dependência de cooperação social que caracteriza os lobos. Não sendo domesticados, eles precisam muito mais da capacidade de observar atentamente o que fazem os outros lobos -seja para não se dar mal na hierarquia vigente na alcateia, seja para ter sucesso em ações coletivas, como a caça.
Os cães, coitados (ou felizardos), foram selecionados para levar uma vida mais mansa. Precisam prestar muito mais atenção nos humanos, para entender o que estes esperam deles e obter as recompensas, ou apenas escapar de uma surra.
O preço pago pelos cães por essa convivência milenar foi perder um pouco da capacidade de se comunicar com os semelhantes. Snip, meu "terrier" escocês, está convencido de que saiu ganhando.
É repórter especial da Folha,
autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp).
Escreve aos domingos
e às segundas.