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    Marcelo Leite

    De quanta biodiversidade precisamos?

    05/10/2014 02h00

    Anos atrás, numa reunião com biólogos e jornalistas em Foz do Iguaçu, Natasha Loder, da revista "Economist", lançou a pergunta do título. O pragmatismo da questão, típico do raciocínio econômico, deixou repórteres estupefatos, e os pesquisadores, indignados.

    Loder deu início, porém, a uma discussão para lá de interessante, e esse era o propósito de juntar as duas espécies no habitat artificial de uma oficina de jornalismo científico. Minha própria resposta foi e continua sendo: tanta biodiversidade quanto for possível.

    Mesmo de um ponto de vista utilitário e antropocêntrico, no entanto, esticamos demais a corda que une oferta e demanda de natureza. Segundo o relatório "Planeta Vivo" da WWF, em apenas quatro décadas a população de 10 mil espécies de vertebrados (mamíferos, aves, répteis e peixes) reduziu-se em 52%.

    Esquecemo-nos com frequência de que ecossistemas originais compõem o substrato da sociedade e da economia humanas. Da saúde do solo à polinização, e da água à energia hidrelétrica, dependemos de comunidades complexas de organismos bem mais do que pode sonhar o economicismo pedestre.

    Pense nas florestas. Sem dúvida é preciso dar cabo delas para plantar alimentos ou criar gado. Entretanto, se eliminadas em excesso ou por completo, surgirão problemas.

    Caso você duvide, saiba que a Grande São Paulo não estaria na enrascada atual se a demanda por habitação (ou especulação imobiliária) não tivesse atropelado a oferta de áreas de mananciais. Matas funcionam como esponjas: retardam o escorrimento das chuvas e permitem a infiltração no solo que abastece o lençol freático e as represas.

    Isso para não falar da omissão do poder público, que sempre fez vistas grossas para a ocupação de áreas de manancial por loteamentos clandestinos, sem rede coletora de esgotos. O resultado pode ser visto em represas como a Billings (veja na reportagem multimídia "Líquido e Incerto" em folha.com/agua ).

    Não foi necessária nenhuma campanha ambientalista, no início do século 20, para Nova York preservar áreas de mananciais e construir o sistema de abastecimento de água de que hoje se orgulha a cidade. Terras foram compradas na região das montanhas Catskill, e aquedutos de dezenas de quilômetros foram construídos.

    Quase toda a água distribuída a mais de 8 milhões de nova-iorquinos chega às torneiras por gravidade –sem precisar ser filtrada. O sistema Catskill/Delaware é considerado um dos mais eficientes e baratos do mundo.

    Não é difícil construir uma argumentação econômica, já se vê, em favor da necessidade de preservar áreas naturais. É provável que uma Amazônia sem florestas se tornasse uma Amazônia sem hidrelétricas, por colapso do ciclo hidrológico.

    Seria uma Amazônia sem povos indígenas –sem ianomâmis, uaimiris-atroaris, arauetés, macuxis, baniuas, caiapós. E sem uirapurus, tambaquis, pirarucus, açaís, cupuaçus, jaraquis, taperebás, mutuns.

    O mundo todo, e não só os brasileiros e seus negócios, ficaria mais pobre. Porque há um valor em cada espécie extinta e em cada língua indígena desaparecida que transcende a contabilidade usual da riqueza. Ele precede a própria economia e nos torna bem mais interessantes que toscos autômatos pragmáticos.

    marcelo leite

    É repórter especial da Folha,
    autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp).
    Escreve aos domingos
    e às segundas.

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