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    Marcelo Leite

    Mentes jovens poluídas

    08/03/2015 01h45

    Todo mundo sabe que poluição do ar faz mal. Nos dias secos de São Paulo, os olhos ardem ou coçam, a garganta se irrita, o nariz entope e pode sangrar. Não imaginava, porém, que pudesse também obstruir o raciocínio –e logo das crianças.

    Experimentos com animais mostram que os poluentes produzidos por veículos na queima de combustíveis fósseis (gasolina e diesel) são neurotóxicos. Vale dizer, podem prejudicar o desenvolvimento cerebral.

    Bebês humanos nascem com um cérebro que tem cerca de um quarto do tamanho alcançado quando se tornam adultos. O crescimento está associado com a proliferação de conexões que dão suporte ao aprendizado, e os primeiros anos de vida são cruciais para o desenvolvimento cognitivo do indivíduo.

    O período dos 6 aos 10 anos é particularmente importante para a vida escolar. Nele se adquirem as ferramentas básicas para todo o resto, como ler, escrever e fazer contas.

    Teria a poluição um efeito negativo sobre os alunos de escolas localizadas em ruas com tráfego intenso? Tal foi a pergunta feita pelo grupo de Jordi Sunyer no Centro de Pesquisa em Epidemiologia Ambiental de Barcelona, que chegou a resultados preocupantes, expostos terça-feira (3) em artigo no periódico científico "PLoS Medicine".

    Eles acompanharam durante 12 meses 2.715 estudantes de 7 a 10 anos em 39 escolas da cidade catalã. A cada trimestre aplicaram-lhes testes cognitivos para avaliar seu desenvolvimento em dois quesitos: memória de curto prazo (ou de trabalho) e atenção, que sofrem grandes avanços na pré-adolescência.

    Em paralelo, a equipe realizou medições da qualidade do ar no pátio e nas salas de aula das escolas. Classificaram-se então os estabelecimentos de ensino em grupos de alta e baixa poluição do ar.

    Outros fatores que influenciam o desenvolvimento cognitivo foram pesquisados e estatisticamente controlados, como idade, sexo, escolaridade materna, condição socioeconômica e poluição no domicílio.

    Não deu outra. As crianças matriculadas nos colégios localizados em ruas de tráfego pesado tiveram uma melhora de 7,4% no desempenho em testes de memória de curto prazo ao longo do ano, bem menos que os 11,5% alcançados por seus pares em escolas menos poluídas.

    Os autores do estudo não excluem a possibilidade de que variáveis não pesquisadas por eles possam ter pesado nesse resultado. Mas simulações para controlar fatores como trajeto até a escola, tabagismo em casa e qualidade do ensino não modificaram muito os resultados, indicando que eles parecem robustos.

    Um estudo de 2014 de Evangelina Vormittag, Cristina Rodrigues e Paulo Saldiva, patrocinado pelo Instituto Saúde e Sustentabilidade, estimou que 250 mil mortes ocorrerão até 2030 no Estado de São Paulo como resultado da poluição do ar.

    Diante dessa projeção brutal, uma divergência de quatro pontos percentuais no desenvolvimento cognitivo de crianças pode parecer uma filigrana, um detalhe. Não é. No mundo atual, pequenas diferenças de desempenho contam muito.

    Além disso, é difícil encontrar um exemplo mais acabado de injustiça ambiental, até porque não tem relação direta com o suspeito habitual, a pobreza. Bairros ricos também têm poluição atmosférica.

    Seria bom pensar duas vezes, daqui para a frente, antes de construir escolas em vias de tráfego intenso.

    marcelo leite

    É repórter especial da Folha,
    autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp).
    Escreve aos domingos
    e às segundas.

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