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    Marcelo Leite

    Antibióticos, o prato do dia

    30/03/2015 01h56

    O que você gostaria de ter para mistura no almoço de hoje? Qualquer que seja a carne escolhida, é grande a probabilidade de que no cardápio entre uma boa dose de antibióticos.

    Quem optar por salmão, na esperança de comer algo mais saudável, cheio de ômega-3, corre o risco maior. Quase todo o volume desse pescado consumido fresco no Brasil vem das fazendas de aquicultura do Chile, onde já se mediram 1.400 mg de antimicrobianos por quilo de peixe.

    Supondo que o filé seja generoso, aí na faixa de 200 g, a pessoa poderá ingerir até 280 mg de algum antibiótico da família das quinolonas. Para comparar, cápsulas do antibiótico ciprofloxacina –aquele que virou moda na histeria do antraz, em 2001– têm 250 mg ou 500 mg.

    É como se cada refeição viesse com um ou dois comprimidos de lambuja. Só que as quinolonas que combatem as doenças do salmão em cativeiro figuram entre os antibacterianos mais tóxicos para humanos.

    Tarja preta –é o que temos para hoje. Mas saiba que o salmão norueguês pode ter, em média, um décimo da carga antimicrobiana dos chilenos.

    O teor de antibiótico nas outras carnes costuma ser bem menor, mas nem por isso inofensivo. A melhorzinha, quem diria, é a vilipendiada carne bovina, com a média de 45 mg/kg. Depois vem o frango, com 148 mg/kg. O campeão de sangue quente é o porco, com 172 mg/kg.

    Cabe ressalvar que se trata de estimativas para a média do mundo todo, tal como foram apresentadas no artigo "Tendências Globais no Uso de Antimicrobianos em Alimentos Animais" (www.pnas.org/content/early/2015/03/18/1503141112.abstract), publicado há uma semana na "PNAS", revista da academia de ciências dos EUA.

    No Brasil, é possível que seu bife venha com bem menos remédio. A pecuária bovina por aqui ainda é em grande medida extensiva, com o gado criado no pasto e não em confinamento. O uso de antibióticos é mais comum em vacas leiteiras, para prevenir e tratar mastites.

    Em galinhas e porcos, o antibiótico ajuda a ganhar peso, não se sabe bem por que. Parece lógico que animais sujeitos a menos infecções engordem mais. Mas também é possível que a droga regule a flora intestinal dos bichos e favoreça um microbioma propício à absorção de nutrientes.

    O ganho do produtor, porém, é o pesadelo da medicina. Como o consumo de antibióticos na pecuária já excede o uso terapêutico em humanos, há quem responsabilize a criação de animais pelo crescimento alarmante da resistência de bactérias às drogas que deveriam matá-las.

    Essa é a razão pela qual os antibacterianos passaram a ser tão controlados nas farmácias, com receituário especial, retenção da receita etc. O uso indiscriminado de antibióticos e a interrupção do tratamento favorecem o aparecimento de cepas de bactérias que sobrevivem à droga, por ter algum tipo de resistência prévia a ela.

    É um dos melhores exemplos da força da seleção natural em seu sentido darwiniano (embora nessa caso, rigorosamente falando, a seleção seja artificial). Com o tempo, as cepas resistentes se tornam dominantes, e os antibióticos se tornam inúteis para combatê-las. Um perigo crescente em hospitais, assim como na contaminação de carnes processadas em escala industrial.

    Um dos micróbios mais temidos é o Staphylococcus aureus resistente a meticilina ou a oxacilina, cepas também conhecidas pelas abreviações em inglês MRSA e ORSA, respectivamente. Popularmente chamadas de bactérias devoradoras de carne, elas causam uma infecção quase incurável que se propaga pelo tecido subcutâneo, a fasciíte necrosante.

    O abuso e o mau uso de antibióticos configuram um caso de manual do feitiço que se volta contra o feiticeiro. Um grande bônus para a humanidade, surgido com a popularização da penicilina há apenas sete décadas, contribui agora para o surgimento de moléstias graves e intratáveis.

    Embora o consumo de antibióticos recue em alguns países que adotam controles mais fortes, como na Europa, no mundo todo ele vai seguir aumentando. No Brasil, por exemplo, a tendência da pecuária é se expandir, para atender a demanda da China e de outros países, e intensificar-se, com provável aumento do recurso aos antibacterianos.

    O estudo da "PNAS" projetou, com base nessa tendência para a intensificação da pecuária em países de renda média e no crescimento da população e da demanda por proteína animal, qual seria o provável aumento no uso de antibióticos.

    É assustador: de 63,2 mil toneladas em 2010, calcula-se que chegue a 105,6 mil toneladas em 2030. Um incremento total de 67%, à taxa anual composta de 2,6% – muito acima do ritmo de crescimento da população global, que deve ficar em torno de 1% ao ano..

    É muito provável, com tanto antibiótico rolando por aí, que o fenômeno da resistência bacteriana se multiplique e se espalhe pelo mundo. Pense bem nisso antes de encurtar o tratamento de sua infecção ou de decidir o que vai comer daqui para frente.

    marcelo leite

    É repórter especial da Folha,
    autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp).
    Escreve aos domingos
    e às segundas.

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